Do Renascimento aos retratos da realeza do século 18 até os autorretratos de artistas e as selfies nas redes sociais: como o hábito da autorrepresentação em imagem, na verdade, está presente na cultura há muito mais tempo do que a chegada dos Millennials.

Os Millennials, isto é, aqueles nascidos entre 1980 e início de 1990, já foram a grande pauta da mídia e o público-alvo de diferentes campanhas publicitárias devido à maneira como essa geração se manifestou ao conquistar a fase adulta e, por consequência, entrar para o mercado de trabalho. Ao mesmo tempo em que certos comportamentos e rupturas eram vistos como positivos e inovadores, também certos hábitos e exigências se tornaram alvo de crítica ou mesmo de piada. Uma delas é a maneira como essa geração pode se comportar nas redes sociais e como ela se utiliza da tecnologia digital hoje. Mas a grande pergunta é: será que os millennials são realmente responsáveis por esse tipo de comportamento ou isso é só uma continuidade de um hábito que vem sendo alimentado há séculos e potencializado pela inovação tecnológica?

Esse é o foco do texto de de Susan Sims sobre a relação entre a atual cultura das selfies e os autorretratos da realeza do século 18. Isto é, naquela época, famílias reais europeias tinham o costume de contratar artistas para pintar retratos de si mesmos e assim se imortalizarem na arte. Hoje, porém, com novas tecnologias capazes de gerar imagens — da fotografia analógica à digital — , vivenciamos um barateamento e popularização da ferramenta. Tal mudança fez com que criar retratos (e autorretratos) se tornasse algo corriqueiro e numeroso, o que inevitavelmente nos leva à reflexão de que vivemos uma era egocêntrica e superficial, uma vez que, assim como também já ocorriam nas pinturas de retratos, hoje também editamos nossas imperfeições — não mais com pinceladas de tinta a óleo, mas em aplicativos como o FaceTune. Nas palavras de Sims: “Como nos novos filtros de tons pastel do Instagram, [o artista inglês] Joshua Reynolds e vários outros artistas usavam suas pinceladas para cobrir a dura realidade de peles imperfeitas, cabelos despenteados e a [nossa] mortalidade.”

Com o barateamento dos espelhos, artistas começaram a usá-lo como uma ferramenta de treinamento ao criarem autorretratos — muito mais baratos e acessíveis que modelos. Mas autorretratos não eram considerados uma obra de arte à época, apesar de terem funcionado muito mais do que um simples treinamento: era a chance de os artista também conquistarem sua própria imortalidade em imagem e fazerem um estudo sobre sua identidade, algo que estava ganhando relevância durante o Renascimento, na Europa, época em que o humanismo prosperava e a ideia de que quanto mais uma pessoa se conhecesse, mais ela estaria próxima de encontrar Deus.

Por isso, não é surpreendente de encontrar autorretratos de artistas que se ilustraram com aparência representada de Cristo. É o caso de Albert Durer, por exemplo, que também começou a usar o próprio rosto para suas encomendas de pinturas de Jesus. Mas esse hábito não era reservado a um possível egocentrismo: Durer foi um dos primeiros artistas a reforçar o papel dessa classe como criadores supremos, assim antecipando o movimento de emancipação do artista como capaz de materializar sua criatividade de forma independente e não ser subjugado a encomendas da realeza e da Igreja. Como um desdobramento desse esforço pela mudança, também os artistas passaram a se incluir nos retratos encomendados: fosse como um reflexo no espelho, como na famosa pintura The Arnolfini Portrait (1434) de Jan van Eyck, ou ainda como personagem, como no icônico quadro Las Meninas (1656) de Velásquez.

Também as mulheres pintoras, apesar de poucas, ainda assim resistiam e faziam o possível para praticar sua arte por meio do autorretrato, já que dificilmente tinham acesso aos grandes ciclos de arte senão como modelos — aliás, até o século 20, mulheres eram proibidas de observar modelos nus. Foi nessa virada que Frida Kahlo, mais por questões de saúde do que de uma imposição política e social, passou a criar autorretratos como uma maneira de lidar com sua própria solidão e confinamento imposto pelos seus acidentes e enfermidades. A diferença é que, enquanto os retratos do Renascimento faziam uma edição de beleza em seus personagens, Kahlo preferia representá-la de maneira crua e fiel: com suas sobrancelhas unidas e seu buço aparente. Segundo Sims, Frida Kahlo chegou a afirmar que pintava muitos autorretratos justamente por se sentir muito sozinha. E a pergunta que fica é: o que será que os usuários do Facebook e do Instagram diriam para justificar a multiplicação de posts de selfies?

Com a chegada da Kodak em 1900, mais pessoas podiam produzir retratos de si mesmo e de outros de maneira mais acessível e que rompia com o privilégio e exclusividade da nobreza e da burguesia. Apesar de, ainda assim, a tecnologia não ter se tornado totalmente democrática, a fotografia não deixava de provocar um deslocamento tanto do acesso quanto da reprodutibilidade técnica do formato retrato. Isto é, enquanto pinturas demoravam meses para serem concluídas, fotografias se tornavam instantâneas com a chegada da Polaroid e suas câmeras custando $180 durante os anos 1970.

Sims menciona a cantora Stevie Nicks como um exemplo de artista que resolveu aprender mais sobre fotografia fazendo retratos de si mesma, usando a Polaroid, assim entendendo melhor tanto sobre como posar como composição e iluminação. Também Cindy Sherman se tornou um ícone e referência do autorretrato em fotografias, revivendo a exploração da identidade do artista ao se transformar em diferentes personagens a cada clique. E com a chegada dos celulares e dos smartphones, o acesso à fotografia se ampliou ainda mais e acrescentou uma nova camada na polêmica do fazer artístico e da produção de imagens: isto é, enquanto retratos exigiam muita técnica e aprendizado para serem realizados, a fotografia digital pede apenas que tenhamos o aparelho e apertemos um botão. Daí nascem os influenciadores e as celebridades selfie-cêntricas, o que Sims conclui que seja uma epítome do que o fenômeno da selfie se tornou ou, na realidade, sempre foi: marketing.

“A realeza usava seus retratos para vender a si mesmos, Artemisia Gentileschi os usava para demonstrar sua educação rebuscada e Rembrandt usava para melhorar suas habilidades.
Ainda assim, trata-se menos de uma autocrítica e mais sobre autoengrandecimento hoje em dia. Assim como crianças brincando no parquinho, é mais sobre “olhe para mim”, independentemente se essa atenção é conquistada ou não.”

Apesar de a culpa a esse hábito das selfies ter sido reservada aos Millennials, trata-se, na verdade, de uma prática muito mais antiga e enraizada no comportamento humano. Algo que, na verdade, dá brecha para reflexões mais profundas acerca da simbologia da representação humana em imagem, desde as pinturas nas cavernas e as esculturas humanas do paleolítico até a forma como “o homem ou a mulher comum pode se sentir igual aos Bourbons ou a Lady Gaga — mesmo que superficialmente — sem realmente ter qualquer importância.” Conforme as pinturas e esculturas eram um processo demorado, rebuscado e caro, reservado apenas à nobreza, essa produção de imagens se tornou um sinônimo de importância e de status, o que se rompe com a simplificação da técnica em dispositivos eletrônicos, de modo que qualquer um pode ser sujeito em um retrato e a lógica de importância e relevância se dissolve no acesso à tecnologia, mais barata, porém ainda assim uma divisora de águas.

Então, como ressalta Sims, “de fato, temos mais em comum com os reis e rainha de séculos passados do que imaginamos”, só criamos um novo reino digital no qual nossas imagens técnicas criam imortalidades e relevâncias no novo mundo simbólico das redes sociais.

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