Saúde mental, machismo e doping foram alguns dos assuntos discutidos durante os Jogos Olímpicos de 2021

As Olimpíadas e Paralimpíadas deste ano foram muito além da competição entre os atletas para se tornar um palco de discussões sobre questões de gênero, saúde mental, e mesmo do uso de doping. Primeiro, a equipe feminina de handebol de praia norueguesa foi multada por usar shorts em vez de biquíni, conforme a convenção rege. Porém, enquanto isso, a equipe masculina está livre para usar shorts e camiseta e é na fotografia das duas equipes que essa desigualdade fica latente, bem como a sexualização dos corpos femininos e o papel dos patrocinadores ao apelarem por modelos mais reveladores.

A isso se soma também a discussão sobre “corpo de atleta”. Se, por um lado, os jogos olímpicos deixam explícita a diversidade de corpos entre as modalidades, muitas atletas foram atacadas não apenas nas redes sociais, mas também por profissionais que acompanharam as partidas. Um exemplo foi o jornalista holandês que criticou o corpo da goleira da equipe brasileira, bem como outra atleta brasileira do vôlei de praia (mesmo depois de ter vencido o Quênia por 2 sets a 0) e uma ginasta mexicana. Ou seja, os ataques e críticas ao corpo alheio se concentraram, não com surpresa, nas mulheres.

Nesse momento, a discussão sobre o uniforme das atletas perpassa por uma questão de performance que não tem a ver com a tecnologia, mas sim com as convenções -- certos uniformes são mais desconfortáveis e, por isso, podem prejudicar a atleta. Contudo, em Olimpíadas passadas, equipamentos como o LZR Swimsuit e Nike Alphafly foram banidos e qualificados como doping por oferecerem vantagem aos atletas. O primeiro se trata de uma linha de roupas para competição em natação feita pela Speedo e usando um tecido tecnológico de elastano-nylon e poliuretano; o segundo é um tênis lançado em 2017 pela Nike e que foi anunciado como sendo “super leve, macio e capaz de oferecer 85% de retorno energético.” 

Em 2019, o corredor Eliud Kipchoge usou um protótipo do calçado e se tornou o primeiro atleta a correr uma maratona em menos de duas horas - daí o motivo pelo qual o Nike Alphafly foi banido. No entanto, o novo modelo Nike Vaporfly recebeu permissão, sendo que outros calçados também deveriam seguir regras como não ter sola mais grossa que 40mm e ter mais de uma placa ou lâmina de sustentação. 

Porém, quando falamos de doping, geralmente acabamos pensando no caso de atletas que usaram drogas e outras substâncias que poderiam melhorar sua performance. Foi por causa disso que a Rússia foi banida das Olimpíadas de Tóquio, apesar de atletas russos “limpos” terem competido sob o nome de Comitê Olímpico Russo. 

Um artigo publicado no blog Applied Divinity Studies, contudo, critica a maneira como o IOC (Comitê Internacional Olímpico) realiza os testes antidoping, desde a sua obsolescência até os truques que atletas podem usar para mascarar um resultado positivo. No caso da testosterona, por exemplo, há variantes que têm uma meia vida de 29,5 dias ou então de apenas 0,8, o que torna a detecção muito mais difícil. Fora isso, há as próprias diferenças genéticas -- o artigo menciona a diferença entre os níveis de testosterona em atletas suecos e coreanos, mas também poderíamos mencionar o caso de atletas intersexo e trans.

Depois de a World Athletics ter aprovado em 2018 uma regulamentação sobre os níveis de hormônio, atletas intersexo foram impedidos de competir em eventos internacionais como as Olimpíadas. Um dos casos mais famosos é o da atleta Caster Semenya, que ganhou medalha de ouro em edições anteriores. Seus níveis de testosterona são mais altos do que a média feminina e, para competir de forma “igualitária” com outras atletas, ela precisaria baixar seus níveis hormonais. No entanto, quando Semenya começou a usar medicação para essa finalidade, ela notou uma piora em sua saúde. 

Contudo, as Olimpíadas de Tóquio foram também a primeira edição em que abertamente trouxe atletas trans e não-binários para a competição. Foi o caso de Quinn (futebol canadense), Alana Smith (skatista dos Estados Unidos), Chelsea Wolfe (time americano de BMX) e Laurel Hubbard (competidora do time feminino neozelandês para levantamento de peso). 

No caso de Hubbard, por exemplo, ela foi capaz de competir nas Olimpíadas como representante feminina porque o Comitê Internacional Olímpico definiu recentemente que qualquer pessoa poderia competir no time feminino, independentemente do sexo designado no nascimento, desde que seus níveis de testosterona estivessem abaixo de um certo nível. No entanto, como já comentamos acima e também como já mencionado no artigo do Applied Divinity Studies, qualificar um atleta a partir dos seus níveis de testosterona é bastante impreciso.

A proposta defendida no artigo, portanto, é não apenas reformular as Olimpíadas de modo a acabar com o teste de doping, mas também permitir que os atletas se beneficiem de equipamentos e substâncias que podem amplificar sua performance e também melhorar sua saúde. Um exemplo dado é o esteróide Noretandrolona, que é proibido nos EUA, mas usado para tratar queimaduras e anemia na França. Outro, é o caso dos carros da Tesla, que a princípio foram desenhados para serem carros esportivos, mas acabaram sendo adaptados para o consumidor comum após ter tido sua versão “de ponta”. O texto, então, acredita que “com investimentos suficientes, drogas que aumentam a performance poderiam se tornar seguras e legais tanto para atletas de elite quanto para humanos comuns. Não apenas para correr mais rápido e pular mais alto, mas também para viver vidas mais longas e saudáveis, sem medo de deficiências ou distrofias musculares.”

Sua proposta é repensar as Olimpíadas como uma competição transumanista, no que diz respeito à implementação desses melhoramentos como algo básico. Se outrora os Estados Unidos competiram com a União Soviética para ver quem levava o homem à lua primeiro, o artigo sugere que isso deveria acontecer novamente de modo a impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico como base da disputa militar entre nações. 

Fora isso, mais do que banir tecnologias e substâncias ou mesmo destruir a carreira de um atleta que tenha sido flagrado no exame antidoping, o artigo sugere que essas tecnologias sejam liberadas desde que:

  • Para assegurar a melhoria constante em vez do monopólio, todos os designs devem estar comercialmente disponíveis a partir do primeiro evento no qual serão usados de modo competitivo. Alternativamente, os designs podem ser lançados através de patentes públicas, com licenças acessíveis.
  • O “doping mecânico”, definido como um equipamento que oferece sua própria fonte de energia, não deveria ser deliberadamente banido, mas existir em sua própria categoria, equivalente às classes de peso. Diferentemente do teste de drogas, isso é facilmente verificado através de imagens térmicas e raio-x convencional.
  • Dentro da categoria mecânica, pernas biônicas, um terceiro polegar e exoesqueletos poderiam ser liberados.
  • Paratletas deveriam ser bem-vindos sem nenhum tipo de escrutínio e sem o medo de que as lâminas de corrida ou outros protéticos poderiam oferecer uma “vantagem injusta”. Como se vê, essa regulação não apenas é um impedimento para o progresso, mas também profundamente capacitista (“Você pode competir, só não pode ser melhor”)

Isto é, se o Comitê Internacional Olímpico oferecesse mais abertura a esse tipo de mudança, poderíamos não só estar vendo o nascer de olimpíadas transumanistas, mas talvez a própria obsolescência da modalidade paralímpica. Não há uma solução mágica e consensual para esse tipo de questão, mas, de qualquer forma, já vivemos em um momento de tecnoatletas. 

Paul Preciado é um teórico dos estudos de gênero que comenta como pessoas trans são “tecno-humanas” por já fazerem uso de tecnologias como suplementos hormonais ou mesmo cirurgias como forma de manipular seu corpo. Se para Donna Haraway, ciborgue é um ser pós-gênero e modificado pela tecnologia, então cada vez mais nos aproximamos de um futuro de olimpíadas em que ser ciborgue será a norma -- tanto no que diz respeito à questão do doping quanto na eliminação da divisão entre times femininos e masculinos.

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