Um dos meus assuntos preferidos a serem levantados durante as minhas palestras e aulas é justamente a questão dos estereótipos de gênero que continuam sendo reproduzidos na produção de robôs realistas.
Este já foi tema de um outro post, mas na semana passada, Matt Simon publicou na Wired um artigo que resgata essa discussão. Em It’s time to talk about robot gender stereotypes, Simon inicia sua análise comentando como robôs são, afinal, uma poderosa “tela em branco” que criamos, porque podemos customizá-los da maneira que quisermos. Isto é, podemos criar robôs para nos ajudar no dia a dia, robôs que sejam grosseiros ou até mesmo robôs que são idênticos a nós, como é o caso da linha Geminoid de Hiroshi Ishiguro. Nesse sentido, Simon comenta que “não apenas o robô é um espelho de seu criador, mas também de toda nossa espécie: aquilo que fazemos das máquinas reflete aquilo que somos.”
E isso significa que a maneira como já estamos corrompendo esse processo ao criar robôs com estereótipos de gênero exagerados e superficiais diz muito sobre como não estamos necessariamente criando um espelho de nós, mas sim construindo uma casa de espelhos que distorcem e exageram as proporções de seu reflexo. Essa é a hipótese de Julie Carpenter, estudiosa das interações homem-máquina. “É muito distorcido, especialmente hoje em dia, enquanto estamos sendo introduzidos à ideia de robôs, principalmente os robôs humanoides realistas que já existem no mundo exterior à ficção científica.”
O que Simon questiona é que, nesse sentido, o maior problema que enfrentamos na robótica seja a questão de gênero. A isso se incluem a presença absoluta de vozes femininas para assistentes digitais, uma vez que pesquisas já demonstraram que as pessoas se sentem mais intimidadas por uma voz masculina do que por uma voz feminina, quando ambos estão guiando (por exemplo, na voz do GPS). E é por causa dessas pesquisas que os cientistas tomam a decisão de materializar esses vieses ao pensar na eficiência acima da mudança cultural e social que eles poderiam promover ao tomarem a decisão contrária.
“Robôs não têm gênero — eles são metal e plástico e silicone, e são preenchidos de zeros e uns. Gênero é uma complicada mistura da biologia, algo que robôs não possuem, e da maneira como nós nos sentimos a respeito dessa biologia, o que são sentimentos que robôs não têm. Ainda assim, já estamos encontrando formas de refletir nossos problemas sociais em robôs. Um estudo, por exemplo, descobriu que os participantes julgaram um robô programado para cumprir um serviço de segurança como mais masculino, enquanto julgaram o mesmo robô, só que programado para guiar, como sendo mais feminino (ecoando as preferências de gênero nos assistentes digitais). O perigo é que os criadores de robôs, conscientemente ou não, possam explorar estereótipos de gênero de modo a tentar fazer suas máquinas mais efetivas — fazendo um robô recepcionista parecer mais feminino e, portanto, mais “acolhedor”, ou um robô segurança que tenha ombros largos e, portanto, mais “autoritário”.”
Mas como argumenta Simon, isso não precisa ser assim. Na realidade, robôs poderiam muito bem ser usados de forma a confrontar e iniciar uma mudança nesses estereótipos. Para Carpenter, “seria ótimo se, de alguma forma, pudéssemos usar robôs como uma ferramenta para melhor entender a nós mesmos, e talvez até mesmo influenciar de alguma forma positiva. Globalmente, o movimento social para o qual estamos nos direcionando é o da igualdade. Então por que retroceder? Por que referer a normas dse gênero dos anos 1960?”
Na realidade, essa tendência a dar gênero a produtos é um problema já inerente ao capitalismo atual e conhecido a partir do conceito do pink tax, isto é, o valor que uma mulher paga a mais por um produto idêntico ao masculino, porém ao receber um design de estereótipo feminino (por exemplo, ser oferecido na cor rosa), acaba também acarretando no aumento do preço. Esse é o caso das canetas Bic, por exemplo, ou então quando os famosos lenços de papel, com design meigo de flores e cores pastel ganha um toque “masculino” para que os consumidores não se sintam envergonhados pela caracterização “afeminada”.
Mas no caso dos robôs, isso é muito mais sutil do que simplesmente uma escolha de cores ou de estampas. Um recente estudo revelou que quando as pessoas foram expostas a fotografias de robôs humanoides, todas elas consistentemente escolhiam um pronome particular para endereçar às máquinas: “eles se referiam a um robô com torso reto usando pronome masculino quase 90% do tempo, mas robôs com uma cintura mais pronunciada eram tidos como mais femininos. Ombros largos, por outro lado, eram classificados como mais masculinos.”
É nesse sentido que Simon alerta na hora de se pensar, por exemplo, em um robô para ser usado em uma loja de departamentos. Uma simples característica de design, como uma cintura mais fina, pode já reforçar uma tendência a imaginar que se trata de um robô feminino ou afeminado e, por consequência, reproduzir estereótipos de gênero no mercado de trabalho. “As pessoas têm medo de se aproximar se os braços são muito grandes ou se os ombros são muito largos. Elas podem até ter medo do robô”, argumenta Gabriele Trovato, roboticista na Universidade Waseda, no Japão.
“Claro, designers não irão sempre explorar intencionalmente estereótipos de gênero. Um designer pode, por exemplo, querer que seu robô doméstico pareça robusto para que dê a sensação de que ele é forte o suficiente para levantá-lo da cama. É sobre inspirar confiança. Mas o tamanho não necessariamente é proporcional à força — motores elétricos não crescem como músculos quando você os exercita. Ao dissociarem o tamanho da força dos robôs, seus criadores têm uma oportunidade de reforçar a inumanidade dessas máquinas, fisiologicamente falando.”
Apesar de parecer uma boa solução, Simon reforça que isso pode não ser o suficiente para acabar com os estereótipos de gênero ou a tendência a empregar um gênero a essas máquinas, mesmo quando elas nem se parecem humanas ou animais. E isso ocorre mesmo entre seus criadores, como um que criou um pequeno robô-trator e o tratou como “ele”, apesar de a máquina ser totalmente desprovida de gênero.
Por outro lado, “para muitos criadores de robôs, esse tipo de tendência a empregar gêneros facilita o desenvolvimento de uma máquina com personalidade e, portanto, fica mais fácil de o consumidor se conectar a ela. (Isto é, comprá-la)”, argumenta Simon. Na língua inglesa, ao tratarmos um robô como “it”, portanto um pronome sem gênero e comumente endereçado para coisas e animais, desenvolvemos uma linguagem muito menos interessante e atrativa do que quando tratamos o robô como ele ou ela. É por isso que, na história da robótica, roboticistas sempre estiveram nesse confronto e, por isso, não é difícil de se encontrar exemplos que só reforçam esses estereótipos. “Também fica como nosso dever demandar mais do que esses estereótipos esgotados”, conclui o autor.
Para Carpenter, como consumidores, temos o poder de fazer melhor e de superar essas questões que já há muito tempo assombram a humanidade — por tempo até demais. Então o movimento acaba sendo de via dupla: tanto os roboticistas devem passar a considerar mais esses elementos na hora de desenvolver suas máquinas quanto os consumidores não devem aceitar mais essa reprodução de estereótipos.
Por enquanto, porém, o que vemos é empresas do mercado erótico incluindo inteligência artificial em robôs humanoides femininas que podem ter seus rostos trocados e personalidade escolhidas tão facilmente através de um aplicativo de celular. Ou seja, temos um longo caminho ainda para percorrer.