A publicidade e a propaganda sempre emprestaram a credibilidade e a fama de certos indivíduos para que estes comunicassem uma mensagem, vendessem um produto ou reforçassem uma ideia. Das propagandas musicais gravadas por Marlene Dietrich, com o objetivo de desmoralizar os soldados inimigos durante a Segunda Guerra Mundial, até as pin-ups dos anos 50 e 60 ou a maneira como Andy Warhol misturou arte, celebridades e publicidade em sua obra, artistas sempre estiveram conectados à indústria do entretenimento e da comunicação.
Nessa mesma época, entre os anos 70 e 80, movimentos de contracultura como o punk, por exemplo, traziam uma narrativa contrária a essa parceria firmada entre artistas e a publicidade (ou o mercado como um todo, de certa forma). Naquele momento, discursos anti-capitalistas e contrários ao establishment davam o tom à forma como essas pessoas se manifestavam através da música, comportamento, moda, artes visuais, literatura ou mesmo a partir do cinema. O cyberpunk, aliás, foi um desdobramento da literatura de ficção científica que, nos anos 80, trouxe a inspiração rebelde e pessimista do punk para o contexto das tecnologias cibernéticas que se desenvolviam ao longo da década.
Há algumas semanas, o jornal The Guardian publicou o artigo No alternative: how brands bought out underground music, no qual Rachel Aroesti aborda como as marcas estão investindo em parcerias com artistas alternativos e se isso estaria destruindo a noção de contracultura. Apesar do título polêmico, o texto tenta argumentar os lados positivos e negativos em torno da prática. Isso, aliás, já acontece desde os anos 90, quando a Vans lançou o Vans Warped Tour, um festival de música e esportes que acontece nos Estados Unidos e no Canadá.
Contudo, foi especialmente a partir dos últimos dez anos que as empresas passaram a se aproximar cada vez mais dos artistas, assim como se buscassem neles uma autenticidade que muitas vezes a própria marca não consegue construir sozinha. Segundo Jamie Brett, da Youth Club, uma organização sem fins lucrativos que mapeia a cultura jovem, as marcas têm cada vez mais se interessado em se reconectar com sua herança subcultural ou então tentam forjar um passado conectado a um nicho específico, caso não o tenham.
Dessa forma, as marcas acabam por pegar um atalho no branding ao emprestar o elemento cool de artistas alternativos, assim como se essas empresas realmente ditassem tendências. Esse norteio é principalmente dado a partir da perspectiva do coolhunting, disciplina que pesquisa e mapeia tendências que ainda estão muito nas bordas, em nichos específicos, mas que logo se popularizarão. É a partir do livro The Signals Are Talking: Why Today’s Fringe Is Tomorrow’s Mainstream, que Amy Webb aborda o trabalho dos coolhunters ao visualizarem essas tendências, sendo também essa prática um desdobramento do Future Studies.
Aroesti cita exemplos recentes de como artistas como a rapper Princess Nokia estrelou um curta da Maybelline, assim como a banda Rhythm Method, que tomou conta da trilha sonora do desfile da Topman. Fora essas parcerias pontuais, há ainda plataformas como a Red Bull Music Academy em que a empresa realmente oferece uma residência artística e apoio ao desenvolvimento de uma cena musical, muitas vezes focada em talentos ainda muito periféricos e, por conta disso mesmo, a iniciativa acabou ganhando um toque hipster, mesmo aqui no Brasil, onde a Red Bull atua com esse mesmo projeto em São Paulo, sendo o festival Red Bull Basement um dos desdobramentos das diferentes iniciativas que a marca lançou em apoio a pesquisadores e artistas.
No entanto, Aroesti também alerta que essa iniciativa não é particularmente lucrativa para a Red Bull. Segundo um dos fundadores da RBMA, Many Ameri, a empresa só entrou no ramo musical para apresentar coisas que são interessantes e se utilizar dessa liberdade para oferecer visibilidade aos artistas, o que marca um contraponto à forma como as gravadoras gerenciam o sucesso de seus artistas a partir de um ponto de vista comercial. É por conta de não existir essa pressão de retorno financeiro que artistas como a rapper Little Simz descreve a Red Bull como uma empresa “muito gentil” em ter apoiado sua produção musical sem interferir em seu processo criativo.
Isso não fez com que Little Simz se tornasse famosa — na verdade, seu álbum nem conquistou um posicionamento nos rankings. E esse nem é o objetivo das marcas ao estabelecer o contato com esses artistas. De acordo com Steven Appleyeard, do Boiler Room, ao convidar músicos de uma cena mais alternativa, as marcas garantem que não serão “obscurecidas” pela fama destes. “Trabalhar com artistas no top 10 pode ser um falso investimento, porque o alcance e o engajamento que a marca ganha a partir disso é meio que transitório”, ele argumenta.
Como um site de streaming de performances musicais online, o Boiler Room trabalha junto a marcas desde seu lançamento. E é justamente isso que faz com que a plataforma tenha competitividade ao oferecer seu produto de forma gratuita. Ademais, Appleyard argumenta, muitas vezes é só assim que certas ideias artísticas conseguem ser realizadas. Com patrocínio da Budweiser, o BR fica responsável pela curadoria de artistas, porém é junto à marca que o line-up final é decidido, já que ele precisa fazer sentido tanto para o site quanto para a identidade da marca — o que, muitas vezes, pode acabar sendo tão genérico que não se torna um fator limitador.
Por outro lado, a jornalista Rachel Aroesti ainda traz a possibilidade de as marcas trazerem artistas underground para suas campanhas publicitárias muito mais por questão do estilo e aparência do que realmente pelo seu trabalho. Recentemente, a grife Versus Versace trouxe o rapper Tommy Genesis junto à cantora Cosmo Pyke para estrelar sua campanha de inverno 2017. “Estou muito ciente de que essas colaborações vêm com o privilégio de as marcas pensarem que você é bonito o suficiente”, ela comenta. “Não tenho nenhuma ilusão de que quando recebemos essas propostas de trabalho é porque, claro, somos artistas, mas também porque temos a aparência que eles querem.”
É a partir desse contexto que Aroesti fala sobre uma “comoditização da contracultura”. Ao mesmo tempo em que as marcas começam a se focar em grandes causas, como a questão da representatividade e políticas identitárias, os artistas trazem um lado mais “ameno” desse tema a partir de projetos como a recente campanha da Smirnoff, Equalizing Music, que tem como objetivo duplicar o número de artistas mulheres em festivais até 2020.
De maneira geral, o segredo é ter noção de quais parcerias realmente fazem sentido e quais realmente têm a ver com a marca. Isto é, não é porque determinada cantora ou determinado cantor vem ganhando destaque ao protagonizar campanhas publicitárias que esse artista pode se encaixar em todo e qualquer posicionamento ou discurso aplicado pelas marcas. Um bom exemplo nacional é a maneira como a cantora Karol Conka vem conquistando seu espaço na publicidade, seja em campanhas que são mais acertadas à sua identidade e trabalho artístico, enquanto outras parecem apenas emprestar seu backgroundcomo uma forma de valorizar uma marca que não necessariamente faz sentido à maneira como a artista se posiciona criativamente.
Por fim, Aroesti cita alguns exemplos polêmicos de quando o U2 firmou parceria com a Apple, limitando o acesso de seu álbum Songs of Innocence para uma audiência de 500 milhões de pessoas no iTunes, ou quando Alicia Keys colaborou com a BlackBerry, porém continuou tuitando de um iPhone. Apesar disso, de maneira geral, o público tem aceitado o fato de artistas alternativos estarem estabelecendo esses tipos de parcerias, especialmente levando em conta o ponto de vista financeiro.
Como conclui a jornalista, “parece lógico quando você considera o fato de que as parcerias entre artistas e marcas existem em um clima de culpa”, uma vez que fãs ouvem suas composições de graça em serviços de streaming como o Spotify ou o YouTube, nos quais o fato de se haver publicidade é um sintoma do fato de que aqueles ouvintes não estão realmente interessados em pagar pela música — e é justamente por isso que esses serviços foram criados.
Mesmo assim, Aroesti diz que essa cumplicidade também pode ser um motivo de preocupação, já que, apesar de a publicidade ainda não ter dominado a contracultura por completo, por outro lado, ela já está modificando a maneira como a cena da música alternativa se configura.