Na semana passada, a revista Você RH publicou como matéria de capa o artigo “Causa mortis: trabalho. Por que as pessoas estão morrendo por um salário?”. O que no Japão já tem até um termo, karoshi, agora chega ao Ocidente como uma preocupação que não deixa para trás a quantificação dos cifrões: nos Estados Unidos, a estimativa é que o emprego acabe com a vida de 120 mil pessoas por ano, o que significa um prejuízo de 180 bilhões de dólares, isto é, 8% do custo total com saúde, como afirma o professor de comportamento organizacional da Universidade de Standford, Jeffrey Pfeffer.
No Brasil, as coisas não estão muito diferentes: nos primeiros meses de 2018, a Previdência Social registrou 8.015 licenças concedidas pelo INSS por conta de transtornos mentais e comportamentais adquiridos no serviço — um aumento de 12% em relação ao mesmo período no ano anterior. Também o afastamento por depressão e ansiedade aumentou em 5%, sendo que há dez anos essa taxa era inferior a 4%. Também por aqui os gastos de saúde pública aumentaram nos quesitos de transtornos psicológicos e comportamentais: 784,3 milhões de reais foram gastos entre 2012 e 2016, o que representa 7% das despesas médicas do país.
Dentre os motivos para chegarmos a este cenário estão situações específicas ao dia a dia no trabalho, bem como salários baixos e a falta de tempo para o trabalhador cuidar da sua própria saúde. Também não se exclui o fato de que, apesar do expediente acabar, não é o mesmo que ocorre com as mensagens no Whatsapp e na caixa de entrada do e-mail. “A gente vive uma situação de desumanização”, comentou à revista o professor de psicologia da USP, Sigmar Malvezzi.
Mas essa não é uma questão reservada aos que têm carteira assinada, mas também aos profissinais que atuam na chamada gig economy, isto é, as pessoas que prestam trabalhos temporários ou que prestam serviços extras em plataformas sustentadas por aplicativos como a Uber ou a Rappi. O que isso resulta, como indica reportagem da Você RH, é que há uma “quantidade maior de trabalhadores que precisam se virar por conta própria, não têm acesso a planos de saúde nem outros benefícios e sofrem de insegurança financeira.” São, portanto, os únicos responsávies por si mesmos, o que não significa que têm um conhecimento prévio de gestão da própria carreira e do próprio dinheiro — daí o desdobramento também a nível de saúde mental e física.
Na semana passada também ocorreu a morte do modelo Tales Soares durante um desfile na São Paulo Fashion Week. Mesmo sem a publicação do laudo médico, o que veio à tona foi o questionamento da insustentabilidade do mercado de moda desde sua cadeia de produção à maneira como tratam seus colaboradores. Diferentes profissionais da área publicaram em suas redes sociais depoimentos e desabafos sobre o evento, tanto do ponto de vista da reação da marca e da organização da fashion week (que continuou o desfile mesmo após o resgate do modelo) quanto à maneira geral como modelos são tratados.
Em seu Instagram, a modelo Natasha Soares expôs respostas de colegas de trabalho que se disseram não se sentir saudáveis em seus próprios corpos, que nunca estão bons o suficiente e que, em temporada de desfile, chegam a fazer tanto exercício que adoecem. Isto é, quando uma indústria vende um ideal que nem mesmo seus atores conseguem sustentar, como é que ela pode ser sustentável e admirada pelos consumidores? Ao mesmo tempo em que aqueles que estão fora da indústria são impactados pelas imagens e os ideais da moda, também quem está na passarela e por detrás das câmeras sofrem e morrem para fomentar essa mentira que não está favorecendo ninguém.
Todo o sistema parece estar erodindo: são 13,1 milhões de brasileiros desempregados e um aumento de profissionais liberais enquadrando-se no regime MEI ( 7,7 milhões em dezembro de 2017) representa uma possibilidade de rombo ainda maior na previdência social. Enquanto isso, na América do Latina e Caribe são apenas 5% dos profissionais que afirmam trabalhar em um local com ações para o bem-estar. De um ponto de vista mais tecnológico e futurista, o que vemos no horizonte é a possibilidade de automação de cerca de 1/3 de todas as tarefas que realizamos como trabalhadores hoje em dia. Se, por um lado, questionamos a cultura do hustlee a relação tempo de trabalho versus produtividade, temos ainda bilionários como Jack Ma do Alibaba argumentando que jornadas de trabalho deveriam ser estendidas para 12 horas por dia.
Antes mesmo de falar de sustentabilidade na cadeia produtiva, precisamos falar sobre a sustentabilidade social na qual empresas e indústrias estão envolvidas. Se materiais mais inteligentes, renováveis e sustentáveis podem ser criados para solucionar o problema dos bens de consumo, por que não poderíamos encontrar formas de tornar também o trabalho e o ambiente de trabalho mais flexível e sustentável para os trabalhadores? Por que não questionamos certas “verdades” ou estereótipos que são prejudiciais a diferentes trabalhadores e, afinal, às pessoas que estão ocupando esses cargos. E isso vai desde questões de gênero (por exemplo, quando pensamos em secretárias e já automaticamente conectamos o trabalho a mulheres) até a saúde mental que envolve a profissão e os estereótipos que ela precisa preencher (sabia que 77% dos estudantes de nutrição foram diagnosticados com transtorno alimentar em 2012?).
Um primeiro passo sendo seguindo pelos setores de RH é o incentivo a programas de bem estar entre os funcionários e a promoção de exames de rotina obrigatórios. Por outro lado, também algumas empresas, inclusive no Brasil, já estão testando novas jornadas de trabalho — como a Unilever, que está testando apenas 3 dias de trabalho na semana. Cada vez mais profissionais também têm adotado o home office como método, aprendendo então a gerenciar seu tempo e sua saúde mental em um ambiente mais agradável do que os escritórios empresariais ou mesmo os espaços de co-working — que, apesar de descolados, não são nada produtivos e nem agradáveis mesmo com chopp de graça.
Talvez falte mais denúncia, talvez falte mais informação. Talvez falte mais atenção nossa para os bastidores das profissões para que nós não sejamos surpreendidos por uma morte decorrente de problemas causados pelo trabalho — seja ela súbita ou suicídio. O ato de deixar de consumir uma determinada marca talvez seja uma postura de contrariedade e de protesto a esse sistema, mas também precisamos prestar atenção no nosso entorno e reconhecer se nós, como empresários, estamos agindo de forma correta para com nossos colaboradores para além do cumprimento com as regras trabalhistas, mas no olhar para o outro como indivíduo e não como engrenagem. Do mesmo modo, como colaboradores e profissionais autônomos, também temos que notar até que ponto nosso trabalho está nos esgotando e reconhecer os sinais que nosso corpo dá — e se pensar na saúde do outro não é argumento suficiente, o professor Jeffrey Pfeffer alerta: para as empresas, os custos indiretos provenientes do desengajamento, da desmotivação e do presenteísmo dos funcionários pode chegar a ser até cinco vezes maiores do que o montante das despesas médicas diretas.