Se o trabalho é um dos principais elementos que dão sentido à nossa vida, a exponencial automatização de nossas tarefas passa a ser um convite a repensar a maneira como significamos nossa existência.

Em artigo para o site da Harvard Business Review, Robert C. Wolcott reflete sobre como a maioria dos humanos através da história trabalharam não porque queriam, mas porque deviam. “Muitos encontraram conforto, valor e significado em seus esforços, mas outros definiram o trabalho como uma necessidade a ser evitada, se possível”, o autor escreve.

Obras como O Trabalho como Vida, escrita pelo filósofo alemão Dietmar Kamper, apresentam esse olhar histórico e de como o sentido do trabalho se modificou ao longo do tempo, transformando-se de uma penalização até uma atividade norteadora de nossas vidas. Em um curto panorama, Wolcott, no entanto, passa por áreas como a filosofia e a história, mas também levando em conta a questão econômica envolvida no olhar para o futuro do trabalho ou o que seria o ideal para diferentes sociedades e pensadores.

No caso de Aristóteles, por exemplo, o ápice da existência humana se daria a partir da liberdade humana, isto é, “um indivíduo livre de qualquer preocupação pelas necessidades da vida e com uma quase completa agência pessoal.” Em outras palavras, como explica Wolcott, Aristóteles não entendia que grandes mercadores eram livres, à medida que suas mentes estavam sempre preocupadas com aquisição e com o ritmo de seus negócios.

A promessa da inteligência artificial e da automação traz novas questões sobre o papel do trabalho em nossas vidas. Muitos de nós permaneceremos focados, durante décadas, nas nossas atividades de produção física ou financeira, mas conforme a tecnologia fornece serviços e produtos com custos cada vez menores, seres humanos se tornarão mais inclinados a descobrir novos papéis — papéis que não necessariamente estão ligados a como entendemos trabalho hoje.

O desafio, contudo, como recentemente proposto pelo economista Brian Arthur, não será tanto econômico quanto será político. Isto é, como serão distribuídas as vantagens e mordomias da tecnologia? Arthur entende que a maneira como, hoje, no cenário político dos Estados Unidos e da Europa, podemos ver abismos formados entre as elites e o resto da sociedade, o futuro não reserva algo muito distinto.

Contudo, Wolcott acredita que, mais tarde, mas ainda durante este século, “as sociedades irão descobrir como distribuir os benefícios de produção da tecnologia por dois motivos primários: porque será mais fácil e porque devemos fazer isso.” Com o tempo, o autor reforça, a tecnologia irá fazer com que a produção se torne cada vez maior, com menos esforço. “Por enquanto, a história sugere que a concentração de riqueza em tão poucas mãos gera pressões sociais que irão ou ser endereçadas por meio da política ou pela violência ou ambas.”

Mas isso levanta uma outra questão, um desafio mais incômodo: conforme os benefícios da tecnologia se tornam mais amplamente disponíveis — através de uma reforma ou revolução — mais pessoas irão se questionar: “Se a tecnologia pode fazer quase tudo, então o que eu devo fazer, e por que?”

Esse tipo de cenário, de certa forma, vem sendo experienciado desde a Revolução Industrial, conforme a tecnologia já ali começava a fazer essa transição para uma maior parcela da humanidade que já não teria que dedicar tantos esforços para acessar produtos essenciais. Isso, no entanto, não erradicou a grande quantidade de pessoas que ainda enfrentam uma luta diária pela própria sobrevivência. Ainda assim, Wolcott defende que, quanto mais a inteligência artificial e os sistemas robóticos se aprimorarem e estiverem direcionados, o trabalho se tornará cada vez mais algo desnecessário — algo próximo do que John Maynard Keynes descreveu em Economic Possibilities for our Grandchildren como um “desemprego tecnológico”, isto é, um contexto no qual a tecnologia substitui o trabalho humano mais rápido do que somos capazes de descobrir novos empregos.

Keynes previu que isso seria apenas “uma fase temporária de desajuste” e que, dentro de um século, a humanidade poderia superar seu desafio econômico fundamental e ser libertado da necessidade biológica de trabalhar.
Esta é uma visão extremamente esperançosa, mas também um caminho complicado e perigoso. Keynes advertiu: “Se o problema econômico é resolvido, a humanidade será privada de seu propósito tradicional… Ainda assim, não há nenhum país ou povo, acredito, que consiga olhar para um futuro de lazer e de abundância sem medo.”

Mesmo com receio, Keynes imaginava como as pessoas poderiam se dedicar e redirecionar seus interesses e medos quando não precisassem mais se focar no trabalho, no esforço para encontrar os meios básicos de sobrevivência. Desse modo, desprovidos de um dos nossos mais tradicionais e principais objetivos na vida, Wolcott questiona, como poderíamos evitar um futuro niilista e ao estilo da distopia Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley? “Como iremos definir nosso senso de propósito, significado e valor?”


Para responder a essas perguntas, Wolcott traz em pauta o trabalho da filósofa e historiadora Hanna Arendt que, nos anos 1950, desenhou um framework sobre a atividade humana em sua obra The Human Condition. Lá a autora define três níveis da existência humana a partir de uma referência grega, o que se resume no conceito de Vita Activa.

Isto é, o esforço (labor) gera necessidades metabólicas, como a comida, que é um dos elementos importantes para nossa sobrevivência. Por outro lado, o trabalho (work)cria novos artefatos físicos e infraestruturas que definem nosso mundo e que frequentemente nos transcende — desde nossas casas até bens de consumo e obras de arte. Já a ação (action) traz um lado interativo e comunicativo das atividades exercidas entre e pelos seres humanos, isto é, a esfera pública. É nesse âmbito que podemos explorar e definir aquilo que nos distingue como seres humanos e por onde buscamos nossa imortalidade.

Nos próximos 100 anos, a inteligência artificial e os sistemas robóticos irão cada vez mais dominar os esforços e o trabalho, produzindo necessidades e artefatos físicos da vida humana, permitindo que mais de nós possam ascender (Arendt realmente apresento isso como uma ascensão — isto é um julgamento de valor qualitativo) ao patamar da ação. Claro, algumas pessoas poderão escolher o esforço e o trabalho, mas a escolha é a principal diferença.

Como lembra Wolcott, grande parte dos filósofos gregos priorizaram a contemplação acima da ação como o principal objetivo do ser humano. No entanto, Arendt foi contra essa noção ao defender a ação, o que parece ser um pensamento parecido com o da cultura atual. “Em último caso, no entanto, ação e contemplação funcionam melhor quando aliados. Temos a oportunidade — talvez a responsabilidade — de transformar nossa natureza social e curiosa em ação e contemplação”, escreve o autor do artigo para a Harvard Business Review.

Iremos enfrentar dramáticos ajustes a nossa Vita Activa ao longo das próximas décadas, cada um de nós perguntando o que fazer e por que. Tenho a esperança de que nossos netos estarão livres para viver uma vida de compromisso e exploração — ou simplesmente ter um jardim ou cozinhar. Se tivermos sorte, isso será mais uma escolha do que uma necessidade.

Quando Arendt inicia The Human Condition com um alerta para uma sociedade na qual trabalhadores estão prestes a serem liberados das obrigações do trabalho, o perigo que daí surge é que, talvez, essa sociedade não saiba que outras coisas grandiosas ou significativas podem ser feitas para que essa liberdade seja valiosa o suficiente para lutarmos por ela. Como reforça Wolcott, Arendt direcionava esse desafio especialmente para a ideologia comunista, que tem como uma de suas características a glorificação do trabalho.

Por fim, Wolcott termina seu artigo deixando um último questionamento: “Quando nossas máquinas nos libertar de cada vez mais tarefas, a que vamos direcionar nossas atenções?”. A meu ver, esse tipo de ansiedade não me parece tão preocupante se levarmos em conta que ela parte do possível rompimento com a tradicional lógica que há tantos séculos estruturam as nossas vidas.

Isto é, somos condicionados a organizar nossa vida em um linha composta pelo nascimento, anos de estudo, trabalho, família e morte. Mas essa lógica tem se subvertido cada vez mais. Novas propostas de estudo, como as famílias que optam por educar seus filhos em casa, já subvertem a lógica institucional da escola. Pessoas que se iniciam no mercado de trabalho sem fazer faculdade ou pessoas que, mesmo fazendo faculdade, encontram uma forma de monetização para além de sua formação ou de um trabalho formal também se distanciam dessa sequência linear.

Do mesmo modo, novos formatos de família trazem na própria noção de nossa sociedade e vidas líquidas um momento de transição, um Interregno, no qual estamos nos organizando a partir da desorganização, em busca de uma sociedade na qual trabalhar será opcional e novos sentidos poderão ser dados à nossa vida e à nossa existência que não necessariamente estejam condicionados àquilo que exercemos profissionalmente ou à maneira como somos remunerados.

Afinal, não é a profissão que nos define como seres humanos, mas é ela que nos facilita a conquista da felicidade quando podemos aliar a atividade que nos satisfaz à recompensa por isso, algo que, no entanto, não é necessariamente verdadeiro para uma grandíssima parcela da população: seja pela falta de oportunidade, pela remuneração injusta ou tantas outras variáveis que, contudo (e com sorte), poderiam ser reajustadas conforme a própria noção de trabalho fosse subvertida pela não obrigatoriedade de sobrevivência, uma característica tão intrinsecamente ligada à nossa condição atual.

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