Estamos vivendo um momento no qual nos deparamos, todos os dias, com novas descobertas científicas e novos desenvolvimentos tecnológicos. Mas, por outro lado, também temos uma forte corrente que prova a verossimilhança de teorias informais como a ideia da mola social: isto é, assim como na física, quando há muita pressão sobre um lado da mola, seu material resiste e devolve na mesma força uma reação contrária. No âmbito social, isso tem a ver com as ideologias e a batalha travada entre as narrativas dominantes e as que fazem oposição.
Se hoje falamos sobre a robótica e a inteligência artificial como grandes riscos para a nossa obsolescência no mundo do trabalho, por outro lado, vemos uma corrente de pessoas das gerações X e Y buscando um retorno às raízes como uma forma de se afastar e se descontaminar de alguns hábitos e premissas tóxicas com as quais compactuamos nos últimos anos.
Ao mesmo tempo em que mais pessoas vêm se dedicando à redescoberta e revalorização dos conhecimentos ancestrais e de religiões que se afastam da tradição católica e/ou cristã, também vemos um movimento de desconfiança e repúdio daquilo que se abandonou, isto é, o discurso secular (apesar de nem tanto) da tecnologia e da ciência. Daí surgem manifestações e grupos como os terraplanistas e os antivacina, sendo estes últimos, no entanto, os mais nocivos à sociedade por justamente lidarem com uma questão de sobrevivência e que não afeta só o grupo de adeptos, mas toda a população.
Em uma recente matéria publicada no site Quartz, Suraj Patel narra a história de Ethan Lindenberger, de 18 anos, que resolveu se vacinar apesar dos protestos de sua mãe. Como indicado no texto, seus irmãos e ele próprio foram criados a partir de um discurso sobre os perigos da imunização, sendo que um dos argumentos, como ele descreveu em um post no Reddit, era: “Meus pais acham que vacinas são um tipo de esquema do governo. É estúpido e eu já tive inúmeras brigas por conta desse assunto.”
Ao completar 18 anos, Lindenberger pediu ajuda aos usuários do Reddit para finalmente poder tomar sua primeira dose de vacinas contra gripe, pneumonia, catapora, hepatite A e B, HPV, meningite, tétano e outras. O caso se tornou viral e levou o jovem a testemunhar no Congresso no começo de março, de modo que dois congressistas resolveram propor uma lei que permitisse adolescentes de 14 anos a se vacinarem por vontade própria, mesmo que isso vá contra a vontade dos pais.
Essa repercussão veio em um momento bastante propício, já que o estado de Nova Iorque foi recentemente palco de 200 casos confirmados de sarampo. Só no bairro do Brooklyn, por exemplo, foram 133 casos reportados em outubro do ano passado, o que se soma a mais 12 estados norteamericanos que nesses três primeiros meses do ano já também reportaram incidentes do tipo. Tal notícia é surpreendente porque, em 2000, o Centro de Controle de Doenças já havia declarado que o sarampo havia sido erradicado dos Estados Unidos. Isso nos faz, portanto, questionar: o que foi que aconteceu nesses últimos 20 anos?
Para Patel, a resposta é simples: “uma campanha de desinformação sobre vacinas reforçada pelas redes sociais foi o que levou a muito mais pessoas a não se vacinarem.” No caso da mãe de Lindenberger, seu posicionamento partiu justamente de informações coletadas de um grupo de antivacinas no Facebook. Como seu filho explica, “ela pensava que vacinas eram uma conspiração do governo para matar crianças.” Mas ela não é a única a pensar nisso: tanto o Facebook quanto na Amazon há dezenas de grupos distribuindo desinformação e pseudociência para reforçar a hipótese de que vacinas são perigosas, que elas causam autismo, que são uma intriga do governo ou que elas causam as doenças que deveriam prevenir.
O que ocorre é que, apesar de vários médicos terem já se pronunciado para explicar por que essas afirmações são incorretas, na internet, esses mitos continuam valendo e falando mais alto ao influenciar pessoas como a mãe de Lindenberger que, apesar de bem intencionada, acabou tomando uma decisão ruim baseada em desinformação. Por conta desses desdobramentos, tanto governos quanto empresas já estão tomando medidas que visam remediar a situação.
Nos Estados Unidos, um juiz sugeriu que quando pais de crianças não vacinadas tentassem levar seus filhos a uma escola que passou por um surto de sarampo, por exemplo, então sua entrada não seria permitida. Também na Itália, uma nova lei entrou em vigor este mês para barrar crianças com menos de seis anos e que não são vacinadas de irem à escola. Como parte da medida, o governo também tem direito de multar os pais.
A resposta foi que algumas pessoas começaram a declarar que isso era um exagero do governo, que isso estaria ultrapassando a sua jurisprudência, mas o que Patel argumenta é que esse tipo de solução é semelhante aos requerimentos para se tirar uma carteira de motorista ou proibir fumo nos aviões, bem como a proibição de avisar um falso incêndio em um teatro lotado, por exemplo. Para o jornalista, “a legislação sobre as vacinas operam da mesma forma.”
Já no caso das plataformas online, empresas como o Facebook já estão tomando algumas pequenas medidas ao banir informação anti-vacina que é promovida através de publicidade paga, além de diminuir sua relevância nas buscas. No caso do Pinterest, a plataforma tem bloqueado pesquisas sobre vacinação e, na Amazon, os documentários anti-vacina foram removidos do catálogo.
No Brasil, para além do nosso problema com as fake news (que são, na realidade, um problema globalizado justamente por conta de serem um fenômeno da internet), também historicamente passamos por um evento conhecido como a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro, em 1904. Tal acontecimento se deu devido à aprovação de uma lei que obrigava a vacinação contra a varíola, em um momento no qual a doença junto à peste bubônica e a febre amarela matavam muitas pessoas na capital. Em artigo publicado em 2017 na IstoÉ, Cilene Pereira trata justamente dessa atualização do contexto histórico.
Apesar de à época da matéria não existirem dados suficientes sobre o impacto dos anti-vacina no Brasil, o que se podia indicar é que houve uma pequena oscilação para baixo na cobertura vacinal: em 2015, a do rotavírus foi 95%, passando para 88% em 2016. No caso da pólio, diminuiu de 98% para 84% no mesmo período de tempo. Um dos motivos é que as vacinas também têm prazo de validade e, caso não haja demanda, elas são descartadas. Mas Pereira também considera os grupos anti-vacina nas redes sociais, identificando mais de treze mil pessoas reunidas só no Facebook.
No entanto, o que a jornalista destaca é que, enquanto na Revolta da Vacina eram os pobres e com menos acesso à informação que se mostraram mais contrários ao método de imunização, hoje, o cenário é oposto: “Ela é maior entre pessoas das classes mais favorecidas”, como declarou o infectologista Guido Levi, da Sociedade Brasileira de Imunização, para a IstoÉ. Nesse mesmo texto, Pereira conversa também com um casal que preferiu não vacinar seus dois filhos e usar o mínimo possível de medicamentos, optando, então, por uma alimentação que eles consideram saudável. “Nosso corpo é uma máquina perfeita e capaz de se tornar forte e imune se for cuidado corretamente”, afirmou Priscila à revista. Apesar de terem dado aos seus filhos as doses obrigatórias por lei, o casal decidiu não ir além disso.
Dentre os argumentos utilizados por esses pais contrários à vacina estão a ideia de que não existe suporte científico suficiente para justificar que vacinas sejam, realmente, a melhor opção para se prevenir doenças. Essa alegação é falsa e há muitas evidências científicas sobre a segurança e efetividade das vacinas. Fora isso, também se comprovou que não há nenhuma ligação de que a vacina contra o sarampo, caxumba e rubéola fosse capaz de provocar autismo, como indicado por Andrew Wakefield em um artigo publicado em 1998. O pesquisador, aliás, foi condenado por fraude e o estudo foi banido da literatura científica.
Como resultado disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou no começo deste ano uma lista com as principais ameaças mundiais à saúde das pessoas e inseriu os movimentos antivacinas como um dos maiores alertas para 2019. Para Katherine O’Brien, diretora de vacinação da OMS, grande parte desse fracasso na imunização e no retorno de doenças outrora extintas se dá, justamente, por conta dos grupos antivacina que proliferam desinformação e pseudociência.
No Brasil, há o dado de que metade dos municípios não bateu a meta de vacinação, o que se deu também pelo fato de haver uma baixa cobertura vacinal. Com isso, já são reportados casos de sarampo em estados como o Amazonas, Roraima e Pará, onde 83,3% dos municípios não atingiram a meta de vacinação. Tal descuido pode levar o Brasil a perder seu certificado de eliminação de sarampo, o qual foi concedido em 2016 pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
“Temos que reforçar a consciência de coletividade. A vacinação também é um ato de cidadania, não está só se protegendo. Está também diminuindo o risco de os agentes que causam doenças entrarem na comunidade. Com muita gente vacinada, o risco de essa doença se espalhar é quase zero”, explica Alexandre Chieppe, subsecretário de Vigilância em Saúde do Estado do Rio de Janeiro.
Mas nada disso, ainda assim, responde satisfatoriamente o motivo pelo qual chegamos a esse ponto em que tantas pessoas têm fortalecido uma firme crença em mentiras e deturpações. Como já explicamos aqui, o caso das fake news pode ser explicado até mesmo de uma perspectiva psicológica, o que também se estende para esses outros cenários.
Passamos por um momento de desconstrução dos absolutos e das certezas, o que alguns filósofos como Bauman chamaram de “modernidade líquida”, justamente por conta dessa característica disforme, que se esvai e que, ao mesmo tempo, é capaz de se adaptar a todo e qualquer receptáculo. Assim são as verdades do nosso tempo: não são sólidas e não se sustentam, adaptam-se a qualquer receptáculo, isto é, a qualquer pessoa com alguma predisposição a acreditar naquela narrativa por esta ser capaz de preencher algum vazio ou dúvida.
Apesar de Bauman ter ficado conhecido como o filósofo que publicou vários livros sobre essa questão da liquidez, este era um crítico sobre os perigos e consequências desse cenário, uma vez que quando quebramos as verdades absolutas e quando desfazemos as instituições outrora estabelecidas, ganhamos ao romper com o status quo, mas perdemos o controle do leme: navegamos por mares incertos e passamos a desconfiar das coordenadas que outrora eram uma base, mas hoje também são questionadas. Questionamos tudo e não respondemos nada, o que Vilém Flusser, em seu livro A Dúvida, também aponta como a problemática da dúvida que não se finda nunca e acaba por não ser mais uma provocação, mas sim um mergulho na imobilidade da ignorância.