Neste último mês tematizado como o mês do orgulho LGBT, o blog Sci-Fi Interfaces dedicou uma série de artigos sobre a questão de gênero no desenvolvimento de personagens que representam uma inteligência artificial. Apesar de não se preocupar em correlacionar com o estado da arte no âmbito científico, é possível de observar como ficção e realidade estão em constante troca de valores e ideais que são representados nas telas do cinema e que também são levadas ao laboratório.
Com um subtítulo que se traduz como “veja menos ficção científica, comece a usá-la”, o blog ressalta justamente a importância do gênero como metodologia e parâmetro para se pensar as questões da realidade e do futuro que estamos construindo ao apresentar pesquisas quantitativas e que buscam correlações no universo fictício para se pensar o contexto da nossa sociedade. Dentre os temas abordados nessa série de artigos estão inclusas as noções de subserviência de acordo com o gênero da IA, categorização do tipo de inteligência, corporeidade, distribuição de bondade, bem como noções de livre arbítrio e subserviência.
Transitando entre referências retrô e contemporâneas, as reflexões propostas por Christopher Noessel têm como premissa uma metodologia que tenta quantificar para melhor defender sua tese de como o gênero da inteligência artificial se apresenta na cultura pop ou na ficção científica como um todo — em um post específico, o autor detalha com profundidade seu método de avaliação. Aos “data nerds”, como ele se refere, trata-se de um prato cheio para avaliação.
Com isso, Noessel conseguiu traçar, por exemplo, quais são as principais representações físicas de uma inteligência artificial na ficção científica audiovisual. Dentre suas conclusões estão o fato de que quando uma inteligência artificial é representada como sendo igual a um ser humano, por exemplo como os androides de Westworld, fatalmente ela será representada como homem ou como mulher. Quando a IA é pensada para não demonstrar nenhum gênero, porém, ela geralmente acaba tendo um corpo que é mais mecanizado e sem formatos antropomórficos, como é o caso do robô TARS no filme Interstellar.
Quando Noessel leva em consideração as inteligências artificiais sem nenhum corpo, é nesses casos que, no entanto, a predominância fica para uma voz feminina, então sugerindo de que se trata de uma entidade do gênero feminino. Com exceção de exemplos como o JARVIS do universo Marvel, Noessel conseguiu listar pelo menos oito casos de IAs sem corpo, mas com voz e trejeitos femininos: Friday (Avengers: Age of Ultron), Coach (Black Mirror, episódio Hang the DJ), Samantha (Her), VIKI (Eu, Robô), Gipsy Danger (Pacific Rim), Sibyl (Psycho Pass: The Movie), Karen (Spider Man: Homecoming) e Axiom (Wall-E).
Essa é uma predominância que também se vê na prática, quando se descobre em experimentos que as pessoas se sentem mais confortáveis com uma voz feminina em um robô ou inteligência artificial, bem como tendem a interagir com assistentes digitais que são mulheres. São costumes e preceitos antigos, analógicos, que são transportados para o digital e para uma nova era que, por outro lado, precisa quebrar o problema do sexismo que permanece intrínseco na tecnologia, por exemplo usando a própria tecnologia como uma forma de suprimir essa falha.
Mais adiante, Noessel também trata da questão de gênero e subserviência. Para isso, o autor divide as personagens em quatro categorias: IAs que têm livre arbítrio, as que improvisam, as que são relutantes e as que são similares a escravos. Diante disso, Noessel percebeu que é mais provável que um robô com livre arbítrio seja representado como masculino do que feminino ou com um outro gênero. No caso de uma IA que possui um mestre, mas é livre para improvisar, é possível que essa máquina seja agênero ou possua um gênero fluido. Já no caso das inteligências artificiais femininas, aparentemente não há uma significante desproporcionalidade entre subserviência e obediência — na realidade, quando se trata de uma IA escravizada, ela provavelmente sequer terá gênero ou ainda um corpo antropomórfico. Nesse sentido, a conclusão de Noessel é que, enquanto a IA masculina representa o livre arbítrio, a máquina representa a subserviência.
Por outro lado, quando Noessel aborda a questão da bondade e da maldade nas inteligências artificiais, fica claro que as IAs masculinas tendem a ser extremas (muito boas ou muito más), enquanto IAs femininas possuem mais nuances e estão mais próximas da neutralidade. Já no caso de IAs sem gênero, elas possivelmente serão um pouco más ou até mesmo usem essa fluidez de seu gênero como parte de sua estratégia de enganação — como é o caso da Skynet, por exemplo.
No entanto, uma segunda tendência observada por Noessel é que quando IAs apresentam corpos biologicamente próximos ao das mulheres, é mais provável que elas sejam más, mas não tanto. Fora isso, o uso de pronomes femininos ou vozes femininas também se tornaram uma forma de neutralizar a percepção de maldade ou bondade em uma máquina, uma vez que ela por si só já é capaz de gerar estranhamento (daí a mesma lógica do uso de vozes femininas em assistentes digitais ou em robôs de interação social).
Por fim, quando falamos sobre os mestres e criadores dessas inteligências artificiais, nos damos conta ainda de um outro cenário: ainda que possamos dizer que IAs mais subservientes são majoritariamente máquinas agênero e IAs com livre arbítrio tendem a ser masculinas, isso não necessariamente influencia na maneira como elas se relacionam com seu mestre ou criador. O que Noessel observou é que, quando há uma criadora feminina, é muito mais provável que sua IA seja agênero — e vale ressaltar que há bem poucas mulheres sendo representadas como cientistas criadoras de IAs. Já no caso dos homens criadores, é bem mais provável que suas criaturas tenham um gênero definido e que estas sejam mulheres, apesar de Noessel constatar que, se levarmos em conta uma inteligência artificial masculina, simplesmente não há exemplos de criadores que sejam mulheres — estes serão apenas homens ou não possuirão gênero definido.
Ao mapear esse tipo de conteúdo, Noessel nos ajuda a entender melhor o espírito do tempo de nossa cultura e como estamos representando esses arquétipos em nossas ficções que nos inspiram e que conosco troca suas influências e visões de futuro. Refletir sobre esses dados nos traz uma melhor percepção não apenas de caminhos narrativos para a ficção, mas também como estamos traduzindo nossa realidade a partir de valorações orientadas por gênero e seus estereótipos. Nesse sentido, a pesquisa nos ajuda a esclarecer não apenas quantitativamente o que a cultura pop está pondo em evidência, como também um sintoma do que ocorre no âmbito da indústria tecnológica e quais são os ajustes que poderíamos fazer a partir desses cenários especulativos.