Em artigo publicado neste último domingo, o site SingularityHub traz em pauta “por que editar nossa própria biologia irá ser a próxima onda na medicina”. Isto é, mais do que pensar em tratamentos ou ainda na prevenção de doenças, a proposta para o futuro da medicina e da saúde humana (ou do próprio ser humano) é editar nossa biologia e poder modificar aquilo que não está correto — do ponto de vista da saúde. Para Jane Metcalf, co-fundadora da revista Wired e fundadora da empresa Neo.Life, mencionou em sua palestra no evento Medicina Exponencial na Singularity University que, porém, o que se observa é como a história da inovação é incrível, até que chegamos no século 20.
O que Metcalf quer dizer é que, no começo do século passado, médicos começaram a fazer transfusões de sangue, cirurgias complexas, começaram a erradicar doenças infecciosas com esterilização, antibióticos, vacinas e analgésicos. No entanto, na metade do século, os cientistas começaram a ganhar um novo conhecimento mais profundo do corpo humano, conhecimento o qual está sendo usado hoje para manipular os processos fundamentais dos seres vivos.
Como descreve Jason Dorrier em seu artigo, “esta é uma história familiar, mas é uma que sugere algo radical. Assim como a física e a química deram aos humanos o poder sobre o mundo inanimado, a biologia está nos dando a possibilidade de modificar os sistemas vivos, de vírus a bactérias, animais e pessoas.” E é por isso que Metcalf acha que o design é a próxima grande inovação na medicina.
“Nós iremos combater as doenças e melhorar a saúde humana ao projetar sistemas biológicos do zero. ‘Podemos projetar embriões. Podemos editar genes em humanos. Temos biologia sintética. Então estamos realmente olhando para o projeto do futuro humano’, disse Metcalf.”
Para isso, uma das ferramentas mais conhecidas é a técnica de edição genética CRIPSR. Cada vez mais os cientistas estão sendo capazes de manipular genes com o uso dessa técnica e, conforme ela se refina, também são encontradas formas de se criar tratamentos genéticos para pessoas, por exemplo, que sofrem de câncer.
Por outro lado, uma outra questão inevitavelmente levantada por Metcalf durante sua fala foi o caso do cientista chinês Dr. He Jiankui que usou CRISPR para editar embriões humanos e torná-los imunes ao HIV e possíveis outros traços que, no entanto, não foram propositais. Essas crianças nasceram no ano passado e, conforme a comunidade científica soube desse incidente, o trabalho de Jiankui passou a ser universalmente condenada pela comunidade científica por seu desleixo e falta de ética. No entanto, também na Rússia houve outro caso de um cientista declarando publicamente a sua intenção de usar CRIPR para editar embriões humanos.
Do ponto de vista ético, portanto, não falamos da possibilidade técnica ou tecnológica de se fazer algo, mas sim das consequências, se as ferramentas estão realmente prontas e aprimoradas para poder serem usadas em seres humanos. E essa foi uma questão já prevista por George Church, considerado por Metcalf um dos mais prolíficos bioengenheiros da contemporaneidade. Segundo a palestrante, o pesquisador está pesquisando cinquenta tipos de alelos que são benéficos aos humanos, em especial para evitar doenças cardiovasculares e o Alzheimer. Já outros tipos podem ainda melhorar a memória e a aprendizagem, bem como estender os telômeros — o que significa uma melhoria na longevidade, por exemplo.
No entanto, Metcalf não acredita que essas edições e projetos estarão reservados apenas oas genes que existem. Na realidade, há sistemas biológicos sinteticamente criados do zero e que podem ter um novo impacto na sociedade e na própria concepção do que é ser humano. Para Andrew Hessel, CEO da Humane Genomics e professor de nanotecnologia e biotecnologia na Singularity University, esse tipo de trabalho está sendo cada vez mais aprimorado.
Hessel citou a empresa Twist Bioscience, que tem usado biologia sintética para manufaturar sequenciamentos customizados de DNA em larga escala. Clientes podem criar e comprar suas próprias sequências e tê-las entregues por correio. “Com ferramentas como essa, biólogos sintéticos começaram a criar enzimas e proteínas sintéticas, as quais se provaram funcionais — como seus pares naturais — em bactéria”, escreve Dorrier.
Já no caso de Craig Venter, que ficou conhecido justamente por seu trabalho em sequenciamento do genoma humano, desde 2010 há o anúncio de que estão reproduzindo bactérias sintéticas, algo que antecipou seu trabalho de 2016 com células sintéticas “mínimas”, isto é, melhorias nos menores genomas conhecidos, os quais não têm contraparte naturais. Em 2019, porém, Venter surpreendeu com uma nova conquista: o pesquisador foi capaz de criar a bactéria E. coli sinteticamente a partir de uma base de quatro milhões de pares genômicos, o que significa quatro vezes maior do que seu feito em 2010, e usando apenas 61 codões em vez de 64. O próximo passo, já em andamento, é a criação de células eucariotas sintéticas, assim antecipando o objetivo final: a possibilidade de criar genomas humanos do zero, daí o projeto co-fundado por Hessel e intitulado Genome Project-write (GP-write). Segundo ele:
“Literalmente, em dez anos, nós avançamos da criação sintética de proteínas para a criação de células eucariotas. Logo que conseguirmos fazer cromossomos completos e, bem, são apenas 23 deles. Não vai demorar muito até esbarrarmos no genoma humano.”
Mas apesar de esse tipo de conquista levar algum tempo, é importante que a conversa já seja iniciada hoje, tanto para angariar mais mentes pensantes para as pesquisas quanto para críticos e pensadores que considerem essas invenções e conquistas tecnológicas do ponto de vista ético. Na ficção científica, temos exemplos desde Admirável Mundo Novo a Gattaca que nos trouxeram pontos de vista extremos sobre possibilidades tangíveis a partir de conquistas tecnológicas como estas vislumbradas pela bioengenharia e pela biologia sintética. Ou seja, é melhor nos surpreendemos hoje para pensar amanhã e não sermos ameaçados no futuro.