Se a ficção científica há 200 anos vem especulando e imaginando novas tecnologias, por que estas também não perpassariam pelo fazer artístico? Hoje se discute muito a possibilidade de uma inteligência artificial fazer arte não tanto no sentido técnico, já que temos diferentes exemplos de projetos que provaram que isso já é uma realidade, mas no sentido filosófico do que é fazer arte e do que é a criatividade. Apesar de existirem alguns possíveis caminhos para se pensar essa pergunta, um spoiler é que mesmo no doutorado em artes visuais, eu ainda escuto muitas pessoas discutindo o que é arte. Assim como Merleau-Ponty defendeu em sua obra, a filosofia, assim como a arte, é uma disciplina que faz perguntas que são deixadas em aberto — suas criações não vêm ao mundo para dar respostas, mas para alimentar mais perguntas e suscitar novas possibilidades.
Em 1924, Aldous Huxley trouxe em “Admirável Mundo Novo” a sugestão de um gênero musical chamado música sintética reproduzida por uma máquina. Em um trecho do livro, o autor escreveu:
“In the synthetic music machine the sound-track roll began to unwind. It was a trio for hyper-violin, super-cello and oboe-surrogate that now filled the air with its agreeable languor. Thirty or forty bars–and then, against this instrumental background, a much more than human voice began to warble; now throaty, now from the head, now hollow as a flute, now charged with yearning harmonics, it effortlessly passed from Gaspard’s Forster’s low record on the very frontiers of musical tone to a trilled bat-note high above the highest C to which (in 1770, at the Ducal opera of Parma, and to the astonishment of Mozart) Lucrezia Ajugari, alone of all the singers in history, once piercingly gave utterance.”
Em um artigo publicado no site Museum of Imaginary Musical Instruments, o autor defende que essa remitência a uma música sintética poderia ter a ver com a expressão da época “ether music”, que era bastante usada para tons etéreos produzidos pelos primeiros instrumentos eletrônicos, como foi o caso do Theremin, e, por consequência, ao mencionar instrumentos imaginários como “hyper-violin” e “super-cello”, o autor poderia estar relacionando o som dos instrumentos originais à maneira como eles soam quando reproduzidos em gravações de gramofone ou transmissões de rádio, que naquela época, no começo do século 20, eram vistas como ferramentas “substitutas” do que seria mais tarde nomeado como “música ao vivo”.
Nesse sentido, poderíamos pensar em inteligências artificiais, robôs e seres virtuais como “substitutos” não de uma “música ao vivo”, mas sim de música feita por seres vivos? Fica também aí a polêmica sobre a definição de vida e a contraposição entre vida orgânica e vida sintética, mas, de qualquer modo, o que empresas como Auxuman estão fazendo é justamente criar cantores virtuais a partir de avatares digitais. A premissa não é nova, levando em consideração a leva de influenciadores virtuais que já povoam as redes sociais, bem como as personagens Vocaloid que dão personalidade às músicas criadas em um software sintetizador de samples de voz humana. No caso da Auxuman e seus avatares Yona, Mony, Gemini, Hexe e Zoya, trata-se de inteligências artificiais que fazem uma varredura em posts de redes sociais para então criar suas próprias composições. Ou mais ou menos isso, já que elas ainda passam por um processo ainda bastante suportado pela inteligência humana.
Em entrevista para o site Digital Trends, Ash Koosh, produtor musical responsável pelo projeto, a Auxuman está criando “a próxima geração de entretenimento virtual”. No dia 27 de setembro, eles lançaram um primeiro álbum que será continuado com publicações mensais em canais como o YouTube, Soundcloud e outras plataformas de streaming.
Em sua reportagem sobre o case, Luke Dormehl traz justamente a pergunta fatídica se esses avatares realmente estariam criando uma obra de arte ou se realmente suas composições são criativas. Em suas palavras, é difícil de definir a criatividade. Existem algumas poucas métricas para determinar se algo é criativo ou não, mas por enquanto já temos leilões nos quais uma pintura criada por um coletivo artístico de inteligência artificial foi vendida por US$432,500. Mas se a inteligência artificial é criada para ocupar tarefas e postos de trabalho que são considerados insalubres ou perigosos para seres humanos, por que criar programas que seriam capazes de nos substituir em atividades que gostaríamos de fazer? Aí a reflexão chega a ser mais ética do que tecnológica, afinal, a capacidade de desenvolver uma tecnologia não necessariamente justifica a importância e a relevância em desenvolvê-la. Nem sempre isso é pensado a partir dessa lente, porém.
No caso da Auxuman, Luke Dormehl questiona se a arte feita por máquinas poderia vender mais do que artistas humanos, o que ele acredita que talvez não fosse o caso, afinal, seria da mesma forma que filmes independentes e obscuros são mais apreciados por cinéfilos que, ao mesmo tempo, minimizam o trabalho de diretores hollywoodianos que, no entanto, geram uma receita muito maior do que os primeiros. Trazendo para nosso contexto brasileiro, talvez as inteligências artificiais possam substituir a arte de Romeros Brittos, mas talvez demore um pouco mais para conseguir um algoritmo mais elaborado para criar um filme arthouse.
Por outro lado, Dormehl também problematiza a ambiguidade no que entendemos por originalidade. “Um artista humano que tem profundo conhecimento de seu campo e faz referências a ele em seu trabalho é uma forma de ser considerado criativo. Uma máquina é considerada não criativa porque ela não está tentando expressar uma emoção em particualr e não está usando sua criatividade em temas mais profundos. Mas críticos literários já falam há muito tempo sobre ‘a morte do autor’ e como a obra só existe na recepção da audiência.” É um ponto a se pensar, especialmente depois da desconstrução do sentido de arte a partir dos modernistas. Afinal, até que ponto hoje nós entendemos uma obra artística como aquilo que está mais ligado ao modelo clássico e romântico ou mais próximo das vanguardas modernistas e dos artistas contemporâneos?
Curiosamente, Koosh acredita que conforme artistas são também regidos por uma questão comercial e econômica, nem sempre é possível que eles inovem e realmente saiam fora da caixa. Para o CEO da Auxuman, as inteligências artificiais poderiam ser uma forma de tornar mais barata a exploração de misturas e combinações de formas e estilos, de modo a gerar sons diferentes e interessantes. Dormehl acha isso um pouco exagerado, ainda mais tendo em vista o resultado do primeiro álbum dos Auxmumans — nada realmente muito fora do padrão do que é pop hoje. Mas, de qualquer maneira, a criatividade das máquinas já foi usada outrora no desenvolvimento de hipóteses de novas medicações ou ainda em novos componentes para satélites. A provocação do jornalista, portanto, é a possibilidade permitir que as máquinas consigam criar novas vertentes inimagináveis e que torne viável comercialmente que as pessoas consumam esses novos gêneros. Mas mesmo essa afirmação é controversa, afinal, até que ponto Koosh está a par das microculturas de internet e os gêneros underground? No Last.fm, por exemplo, existem tags para bandas com menos de 100 ouvintes e assim por diante. Existe toda uma subcultura de pessoas que buscam ouvir músicas e consumir o trabalho de artistas pouco conhecidos justamente pelo fato de serem quase invisíveis.
Mas assim como os Auxumans ainda dependem de uma grande parte de intervenção humana na curadoria dos conteúdos que essas inteligências artificiais aglomeram, Dormehl comenta como esse processo lembra técnicas como o “cut up” de William S. Burroughs, com a qual o autor, no fim dos anos 1950, começava a explorar novos formatos de texto ao cortar partes escritas e reorganizá-las em um novo texto com um novo significado. “A inteligência artificial faz esse tipo de remix de forma ainda mais interessante. Ela acrescenta um nível de complexidade que tira mais ainda o controle do criador. É como se uma outra entidade quase inteligente estivesse ocupando um papel no processo de produção”, escreve o jornalista.
Dormehl também cita o conceito de “senso decadente” referido por Thomas Hobbes ao falar sobre imaginação, o que significaria que esta poderia ser definida como uma memória obscura de alguma coisa, frequentemente misturada com outras memórias. “Isso é o que faz a criatividade da inteligência artificial tão interessante. Inteligências artificiais que criam refrões de jazz, jogos de computador, monólogos imaginários inspirados em programas de TV, e mais fragmentos de algo reconhecível para nós e, então, misturados e reorganizados usando lógica computacional. É um exemplo fascinante de como humanos e máquinas podem trabalhar juntos para produzir algo novo.”
A partir disso, Koosh conclui que, na realidade, as máquinas são criativas, mas de uma maneira “suplementar.” Para ele, “a criatividade humana será fundamentalmente diferente devido à nossa natureza biológica, nossas necessidades e intenções. Nossas memórias são gravadas e resgatadas em um sistema muito complexo no nosso cérebro, mas as máquinas podem começar com regras e composições com tangentes que criadores humanos poderiam levar meses para pensar. A criatividade da máquina vem para maximizar possíveis resultados que nós humanos, como curadores, podemos olhar e escolher se iremos aplicar ou não em um processo criativo.” Em outras palavras, mais uma vez vemos a lógica do centauro aplicada nas inovações tecnológicas: um humano junto à uma máquina será sempre mais potente do que os dois agentes sozinhos.