Algumas pessoas me perguntam como foi que comecei a trabalhar com futurismo ou futurologia, quais cursos fiz, quais habilidades se deve ter. E, bem, sendo esta uma área multidisciplinar e de múltiplas facetas, encontrei na relação entre a ficção científica e a ciência um ponto de interesse que espontaneamente havia nascido ainda na faculdade, quando fiz minha iniciação científica sobre a animação japonesa Serial Experiments Lain, em 2009.
Foi lá que comecei a pesquisar como uma obra de 1998 já falava sobre uma possível tecnologia que se equiparava à conexão wi-fi (quando esta tecnologia ainda não existia fora alguns estudos mais acadêmicos e técnicos) ou que antecipava o que Elon Musk quer criar a partir de sua iniciativa Neuralink, isto é, a mescla entre homem e máquina a partir de implantes neurais.
E isso gerou um evento, Science’n’Fiction, em 2010, no qual ainda rascunhava essa relação sci-fi/sci-fact com a ajuda de pesquisadores de ficção científica e cientistas interessados no tema, bem como membros de comunidades de fãs que também reforçavam a importância e o engajamento diante da especulação em torto da ciência e da tecnologia.
Mais tarde, em 2016, foi numa conversa sobre um evento que gostaria de cobrir para um site que me descobri palestrante em um painel que falava sobre como a realidade virtual e seus dispositivos já eram imaginados e trabalhados na ficção científica desde Cronenberg até Ready Player One (na época, o livro apenas). E, ao conhecer uma profissional que se intitulava futuróloga, percebi que talvez fosse por ali que eu devesse investir meu conhecimento e meu gosto pela ficção científica — fosse como autora ou como pesquisadora.
Bem, mas estou fazendo essa digressão porque, assim como eu identifiquei ali, em 2016, uma forma de retrabalhar minha pesquisa acadêmica e transformá-la em novas pesquisas de cenários futuros, também os pesquisadores Philipp Jordan, Omar Mubin, Mohammad Obaid e Paula Alexandra Silva, da Universidade do Havaí, publicaram no mês passado um artigo que trata da importância da ficção científica como uma referência para o desenvolvimento de literatura sobre tecnologias de interação homem-máquina.
O trabalho desses pesquisadores foi divulgado em um post do MIT Technology Review, que trouxe à tona algumas das mesmas referências que costumo usarao contextualizar essa relação entre ficção científica e ciência: os satélites geoestacionários criados pelo autor de ficção científica Arthur C. Clarke (que também era matemático e físico), os comunicadores de Star Trek que deram origem aos celulares de hoje (e, anteriormente, ao aparelho da Motorola que homenageou a série com o nome StarTac), bem como os robôs desobedientes de 2001: Uma Odisseia no Espaço e Blade Runner, que ganhou uma nova versão no ano passado para pensar ainda mais adiante, uma vez que já temos muitos daqueles cenários e tecnologias imaginados nos anos 1980 tornados realidade ou, pelo menos, em teste.
Apesar desses exemplos, é difícil de quantificar quanto realmente essa relação causou impacto nas inovações tecnológicas. Como levantado pelo MIT Technology Review, “tecnólogos adorariam entender melhor a forma como a ficção influencia o desenvolvimento de novas tecnologias.” Com o artigo Exploring the Referral and Usage of Science Fiction in HCI Literature, porém, ficamos sabendo como essa interação teve grande importância ao longo da história, bem como ela tem cada vez mais vem se intensificando nos últimos anos.
Para provar isso, os autores da pesquisa analisaram os artigos apresentados em uma das conferências mais importantes da área de interface homem-máquina, a ACM Conference on Human Factors in Computing Systems. O grupo, então, pesquisou quais artigos ali apresentados, desde 1982, continham termos relacionados à ficção científica para poder categorizá-los.
“Eles descobriram que pesquisadores usam ficção científica de várias maneiras diferentes. Uma é para a pesquisa de teórica em design. Outra é para se referir e para explorar novas formas de interação homem-máquina, a qual os pesquisadores cada vez mais pensam estar sendo moldada pelos livros e filmes de ficção científica. Então há o estudo da modificação do corpo humano, que talvez seja melhor explorado a partir do meio da ficção.”
No artigo, os autores apontam que “filmes de ficção científica, séries ou histórias realmente oferecem inspiração para os desafios da interação homem-máquina anteriores e os que ainda virão, por exemplo através da discussão das interfaces mutáveis, implantes ou ética da pós-vida digital.”
Como também observado pelos pesquisadores, mais do que antes, hoje os cientistas olham cada vez mais para a ficção científica como uma forma de entender as questões contemporâneas e as que estão por vir. “Nós especulamos que a referência explícita da ficção científica na pesquisa sobre interação homem-máquina representa apenas uma fração da verdadeira inspiração e o impacto que ela tem”, eles escrevem.
Para o MIT Technology Review, o artigo deu um passo adiante no entendimento dessa complexa relação entre ficção científica e ciência ou, mais especificamente, como a imaginação humana tem impacto na maneira como desenvolvemos a tecnologia que se tornará, enfim, real. “De fato, as empresas de tecnologia cada vez mais empregam futuristas que usam a ficção científica como um meio para explorar potenciais novas tecnologias e seus impactos sociais. Eles chamam isso de prototipagem em ficção científica (science fiction prototyping).”
Com a UP, ou mais especificamente o UP Future Sight, estamos nos construindo como um hub brasileiro que tem se utilizado do pensamento do futurismo aliado à ficção científica como uma forma de prototipar e visualizar cenários, sejam eles a partir da pesquisa, do desenvolvimento de experiências e produção de conteúdo, bem como o design fiction, uma disciplina que foi, inclusive, criada por um autor de ficção científica (Bruce Sterling).
Isto é, tais questões partem da noção de quão importante o gênero da ficção científica se faz em um momento no qual a tecnologia se tornou parte integrante de nossa vida.
Quando assistimos a filmes como Gravidade ou seriados como Mr. Robot, tendemos a pensar que se tratam de obras de ficção científica por se concentrarem em uma narrativa que gira em torno da tecnologia. No entanto, estas são histórias, ficções que partem do contexto atual, no qual a tecnologia permeia todas as instâncias das nossas vidas, ao mesmo tempo em que ali também não há uma preocupação em especular sobre o futuro, mas sim demonstrar a maneira como vivemos e nos relacionamos em um mundo hiperconectado e, por consequência, permeado pela tecnologia. Para chegar a isso, no entanto, antes tivemos que imaginar, prototipar, e é o poder da ficção que faz com que antes visualizemos aquilo que mais facilmente poderemos, em breve, concretizar.