Análise feita pela estudante de psicologia Jean Fan apresenta as questões da rápida ascensão do país asiático e como o enviesamento pode estar atrapalhando nosso aprendizado com o modelo chinês de governança.

Não é novidade que o incômodo de Donald Trump com a China existe — isso, inclusive, já virou meme. A notícia, no entanto, é a análise feita por Jean Fan para o site Palladium Mag sobre como “o sonho americano está vivo na China”. Apesar de soar como psicologia barata, aquilo que o presidente norteamericano mais parece temer, na verdade, beira àquilo que o arquétipo estadunidense sempre almejou, como defende Fan.

A autora inicia seu texto comentando sobre sua já preparação para enfrentar o caos de Shanghai após pousar no aeroporto internacional de Pudong, mas o pior nunca veio: “As cidades que eu visitei naquele ano — Shanghai, Wuhan e Xiangyang — estavam irreconhecivelmente limpas. Os carros estavam em dia. Até as pessoas estavam mais quietas. (…) Em viagens passadas, eu ficava impressionada com o ritmo de desenvolvimento da China. Mas cada ano, ficava cada vez mais evidente que, apesar da rápida modernização do país, a China ainda estava atrás dos Estados Unidos — pelo menos em qualidade de vida. Em 2018, isso mudou. Além de não ficar para trás comparado aos EUA, eu senti que o contrário poderia ser verdade: a China reforça anos de desenvolvimento econômico na discreta melhoria na vida das pessoas. De certa forma, a vida na China está começando a parecer melhor do que viver nos EUA. Não é mais caracterizado como um lugar poluído e com pobreza visível, a China do fim dos anos 2010 parece limpa, moderna e legal.”

Não é sempre essa percepção que temos no ocidente ou, ao menos, esta é contestada quando pomos na balança a maneira como esses ganhos em infraestrutura tiveram seu efeito colateral na forma como as pessoas são administradas. Fan tem consciência disso, ainda mais porque a cobertura do país feita nos EUA geralmente se foca no aspecto distópico dessa nova China. Os exemplos vão desde materiais que endereçam a opressão dos Uyghurs, o banimento de muitos grupos religiosos, bem como a crescente e agressiva influência na vida social e política dos americanos — como demonstraram os casos da Blizzard e da NBA na semana passada. “Mas nos últimos cinco anos, esse discurso, apesar de muitas vezes corrigido, parece ter ficado cada vez mais desconectado das minhas experiências pessoais na China e os problemas mais fundamentais que estão em pauta. Na verdade, eles parecem falhar no comentário sobre o contexto maior e mais importante: quão melhor a vida se tornou para muitos chineses, a nova autoconfiança da China e a luta americana pelo desenvolvimento, otimismo e soberania.”

“A China está mudando de uma forma profunda e visceral e está mudando rapidamente, de uma forma que é quase incompreensível sem ver pessoalmente. Em contraste à estagnação americana, a cultura da China, seu conceito próprio, seu moral estão sendo transformados em um ritmo acelerado — geralmente para melhor.”

Fan comenta que, em março, seus parentes se surpreendiam com quão rápido seus pedidos eram entregues em casa — a Taobao, por exemplo, oferece entregas no mesmo dia para roupas compradas no site que é o maior e-commerce do mundo. O mesmo vale para comida, que chega até 10 minutos depois de pedir pelo aplicativo do celular. Não muito diferente do que já temos hoje no Brasil com iFood ou Loggi? Talvez. Mas ainda há uma outra dimensão que Fan comenta ao falar sobre seu avô: “[ele] notou que o governo reduziu ou eliminou as taxas de entrada em vários parques nacionais, e também estava no processo de reduzir significantemente o preço das mensalidades das universidades para os estudantes ao longo dos próximos anos. Meu pai, numa viagem entre Hangzhou e Shanghai, disse que o governo estava planejando testar o fim da produção e venda de carros não-elétricos em certas cidades já no começo de 2020, assim como estava pensando em quando instituir um banimento mais generalizado.”

Além disso, as pessoas na China pareceram ter um orgulho maior de seu país. Fan, no entanto, como americana, sentiu-se estrangeira naquela situação apesar de sua família ser chinesa e morar no país. A euforia fez com que ela se lembrasse da maneira como as pessoas se sentiam nos anos 1960 nos Estados Unidos quando o entusiasmo girava em torno da ida do homem ao espaço ou ainda como os EUA eram percebidos antes do 11 de setembro. “No carro do meu pai, eu senti um pouco de inveja e então nostalgia por algo que eu experienciei apenas brevemente enquanto criança”, escreve a autora do artigo.

Fan também lembra que, nos anos 2000 e começo dos anos 2010, a China ainda tinha uma percepção geral de que todos deveriam trabalhar duro para apoiar a economia. Agora, esse sentimento mudou para “comece a aprender como curtir a vida e tenha orgulho dos resultados do trabalho duro de todos.” Em um espaço de tempo de apenas oito meses entre viagens feitas em 2017, a maior mudança que a autora viu foi no comportamento das pessoas. No começo de 2018, as pessoas quase que completamente deixaram de usar dinheiro em espécie para fazer pagamentos, independentemente se as compras eram de produtos de grife ou vegetais em um mercado local. Em vez disso, todos estavam quase que exclusivamente usando aplicativos como Wechat Pay ou Alipay em seus celulares.

As milhares de bicicletas particulares que antes entupiam as ruas foram substituídas por bicicletas coloridas e alugadas por aplicativo. As pessoas estavam com menos medo de serem roubadas e que, cada vez mais, havia um sentimento de segurança. Por que? Fan responde que um dos motivos é o fato de que o governo era capaz até mesmo de encontrar um celular roubado, já que suas câmeras de monitoramento estão acompanhando todos os movimentos de todas as pessoas — para o bem e para o mal.

“As mudanças não são só materiais. Eu descobri que os chineses também estão se tornando mais educados. Durante minha última viagem, eu tive a nova experiência de ter que pegar fila para usar o banheiro e, então, precisar fazer uma ligação e, quando eu retornei, a pessoa atrás de mim perguntou-me educadamente se eu gostaria de voltar à fila em frente dela. Isso foi surpreendente para mim. Para trazer isso ao contexto, os chineses foram conhecidos durante muito tempo por “chāduì (插队)” ou “furar fila”. Visitar a China durante seu crescimento fez com que eu frequentemente experienciasse adultos me empurrando violentamente para fora de seu caminho.”

Nesse sentido, tendo em vista a estagnação da vida americana nos dias de hoje, é difícil de entender o que é viver na China hoje. Com essa nova onda de abundância material, Fan entende que os chineses se sentem um pouco mais relaxados — algo também percebido pela futuróloga Camila Ghattas, que há 10 meses vive no país. “Há um senso renovado de esperança e até orgulho, conforme as pessoas se sentem mais confortáveis em resgatar sua ancestralidade chinesa. Eles também são explicitamente encorajados a isso: Xi Jinping reforçou o “Sonho Chinês (中国梦)” como uma forma de “restaurar a grandiosidade nacional uma vez perdida.” Em outras palavras, o sonho americano dos anos 1960 ainda existe, mas ele está sendo vivido em Wuhan agora.

Um dos motivos pelos quais a China passa pelo sucesso atual, segundo Fan, é a ideia de que “o governo tomará conta disso”, algo que é contrário à lógica de inovação americana focada no mercado. “Uma das coisas mais evidentes na mentalidade típica chinesa sobre o governo, especialmente se comparada à expectativa americana, é que os chineses confiam no seu governo. Uma pesquisa de 2017 feita pela Ipsos com quase 20 mil pessoas afirmou que 87% dos respondentes chineses acreditavam que o país estava indo na direção certa. Comparado aos 43% respondentes nos EUA e uma média de 40% entre todos os outros países pesquisados”, destaca a autora.

E isso parece factível quando Fan visita sua família e amigos que moram na China. Qualquer problema que ocorra no país já está na pauta do governo ou então as pessoas esperam que isso seja logo resolvido. A única exceção é que os chineses estão preocupados com a maneira como o governo executa seus planos, especialmente quando tem a ver com trocas contra a liberdade da população. “Há um senso de incerteza sobre como o governo irá reagir aos valores ocidentais como liberdade e democracia. Por enquanto, a decisão tem sido de conscientemente se afastar desses valores e manter a soberania ideológica, conforme a China cresce como um mercado poderoso e se torna mais interconectada com o resto do mundo.”

“Lembre-se da história recente da China: estamos há apenas 60 anos da Grande Fome de 1959–61. Muitos bisavós ainda se lembram dessa época e muitos pais mais velhos e avós viveram boa parte de suas vidas com quase o suficiente para comer durante o período de racionamento. A dificuldade que os chineses passaram na segunda metade do século 20 produziu um grande desejo por estabilidade e riqueza material — mesmo quando isso significa perder a liberdade. Trata-se de um país que lembra duramente a pobreza extrema e que está preocupado com reformas políticas potencialmente desestabilizadoras.”

Assim, conforme nossas histórias no ocidente se focam no sucesso da China e, ao mesmo tempo, seus feitos autoritários, vemos que essa pode ser uma fórmula bastante ameaçadora para todos — afinal, se entendermos que a solução para uma melhor vida e para um país mais rico é seguir um protocolo distópico, então estamos condenados à defesa do autoritarismo. Mas Fan convida o leitor a uma reflexão mais inteligível do país ao comentar sobre essa sua decisão de abrir mão da liberdade tendo em vista o problema da fome e a possibilidade de mais um século de colonização. Talvez, assim, possamos entender que tal medida pode ser extrema, mas que não deixa ser uma forma de se proteger. “Se nós nos tornamos cada vez mais incapazes e sem vontade de entender a China, podemos tomar uma postura mais contrária do que é aconselhável ou necessário. Nós arriscamos aumentar as hostilidades. E isso já está acontecendo”, defende a autora.

De fato, há hostilidades entre países, questões como posicionamento geopolítico ou ainda o exercício do soft power como formas de soberania e expansão, no entanto, interações mais positivas com a China não são impossíveis na visão de Fan. “Não precisamos ser os melhores amigos da China, mas precisamos coordenar o suficiente para não perder ou estragar grandes oportunidades de trabalhar juntos em problemas críticos, como a questão climática, o risco da inteligência artificial e assim por diante. Em um mundo ideal, nós também poderíamos ter a oportunidade ed aprender um com o outro.”

Do ponto de vista americano, Fan acredita que a China pode apresentar um ponto de partida para que o país reveja sua crise em governança, suas falhas e possíveis soluções mesmo que estas venham de um país não-liberal. “O sucesso da China desafia nossa ideologia implícita e certezas enraizadas sobre governança. Isso precisa ser estudado — mas não apenas para trazer melhor coordenação, mas porque em suas conquistas, nós podemos encontrar verdades importantes que precisamos para revitalizar o país.” E talvez isso valha também mesmo aqui, no Brasil.

Essa é uma das questões levantadas pela série documental feita por Ronaldo Lemos em parceria com o canal Futura. Expresso Futuro reúne diferentes episódios nos quais o pesquisador reflete sobre essa ascensão tecnológica da China e quais são as lições que podemos aprender e traduzir ao contexto brasileiro.

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