Em seu novo livro, Team Human, o pesquisador americano comenta como religiosos russos se uniram a tecnólogos americanos e inauguraram uma perigosa lógica anti-humanista presente no mercado atual.

Douglas Rushkoff é um pesquisador que acompanho há uns 10 anos, desde que escrevi minha primeira monografia sobre Serial Experiments Lain e o conheci a partir de seu livro Cyberia — nome também dado ao clube noturno que aparece na animação. Em um de seus mais recentes posts, Rushkoff traz à tona o assunto de seu novo livro, Team Human, que documenta um fato pouco coberto para se explicar como essa onda de grandes corporações e de gurus da tecnologia do Vale do Silício, na verdade, não deixam de ser uma onda gnóstica baseada em um lógica de ficção científica, a qual também é sustentada pela conexão feita nos anos 1970 entre os tecnólogos americanos e os místicos russos.

Durante o prêmio Argos, sediado em São Paulo, os pesquisadores Alexey Dodsworth, Edgar Smaniotto e Antonio Stanziani ministraram uma mesa sobre Transhumanismo no qual endereçaram justamente os pontos de conexão e discrepância entre o Cosmismo Russo e o Transhumanismo como se deu nos Estados Unidos. Apesar de, muitas vezes, talvez por escolha didática, fazermos essa separação, a verdade é que existem conexões muito estreitas, como demonstra Rushkoff: ainda que esses grupos tenham se unido em um contexto de Guerra Fria, foi através de uma tentativa de evitar uma guerra nuclear que esses dois “coletivos” se uniram para desenvolver soluções tecnológicas e promessas quasi-religiosas que, através da mentalidade tecnológica (e por que não também mercadológica?) dos Estados Unidos, a ambição da imortalidade sustentada pela igreja ortodoxa russa ganhou uma nova manifestação no ocidente — do Google Calico à 2045 Initiative como um efeito colateral ocorrido na Rússia.

Não é a toa que o transhumanismo tem como um de seus referenciais, justamente, o padre ortodoxo russo Nikolai Fyodorov, o qual também encontra suas ressonâncias na comunidade mórmon de transhumanistas e na comunidade de cristãos transhumanistas. Em outras palavras, como descreve Rushkoff, “os cosmistas eram uma grande aposta, e sua promessa de tecnologias de extensão da vida rapidamente superou a geopolítica como um tema primário das conferências [de 1970].”

“Os cosmistas falavam sobre reconstruir os seres humanos, átomo por átomo, depois da morte, mover a consciência de uma pessoa para um robô e colonizar o espaço. Os cosmistas juntaram tudo isso para os rebuscados transhumanistas americanos: eles acreditavam que seres humanos não somente poderiam transcender os limites de nossa casca mortal, mas também nos manifestar fisicamente através de novas máquinas. Com um atraente otimismo ganha-ganha, os cosmistas disseram aos espiritualistas americanos que usavam LSD que a tecnologia podia dá-los uma forma de vencer a morte.

A autoatualização através da tecnologia significava deixar o corpo para trás — mas isso era ok, levando-se em conta a tradição gnóstica, de que o corpo era a fonte do pecado e da corrupção humanas. As coisas que robôs e computadores poderiam reproduzir seriam as melhores coisas que temos em nós, de qualquer forma.”

Cena de curta parte do projeto Immortality for All!, criado pelo artista Anton Vidokle, no qual discute a influência do cosmismo russo na sociedade atual.

Por conta disso, tecnologia se tornou sinônimo de um novo passo na nossa evolução como seres vivos, o que fazia sentido também em um momento no qual a primeira fase da cibernética comparava o corpo humano a uma máquina. A esse conceito também se juntaram os assuntos debatidos nas aulas sobre “captologia” de B.J. Fogg, da Universidade de Standford, que tratava sobre o desenvolvimento de interfaces capazes de manipular o comportamento humano assim como se fôssemos máquinas. O propósito do Persuasive Technology Lab, portanto, conforme indicado no site do departamento, é “criar insights sobre como produtos computacionais — de sites a software pare celular — podem ser desenvolvidos para mudar as crenças e comportamentos das pessoas.” Mas mudar para que, questiona Rushkoff. “Para qualquer comportamento que as tecnologias podem induzir.”

Na prática, o que temos hoje são os algoritmos do Facebook programando as emoções e ações das pessoas, os sistemas de machine learning da Uber substituindo cargos e funções de pessoas. Temos o Google desenvolvendo inteligência artificial para substituir a consciência humana, como descreve Rushkoff, e temos a Amazon prosperando em uma economia abstrata de ações e derivados.

“A agenda anti-humana dos tecnólogos pode não ser tão ruim — ou talvez nunca seja completamente realizada — se ela não mergulhasse tão profundamente na agenda anti-humana do capitalismo corporativo. Um possibilita o outro, reforçando um esquema abstrato baseado em crescimento de infinita expansão — algo totalmente incompatível com a vida humana ou com a sustentabilidade de nosso ecossistema. Ambos dependem de um clímax transcendente no qual a essência da da matéria é deixada para trás e a humanidade renasce como pura consciência ou puro capital.”

Em outras palavras, o que Rushkoff argumenta é que, teoricamente, as ideias de aprimoramento humano, de exponencialidade e longevidade talvez não sejam tão ruins se consideradas de forma isolada, porém é justamente o fato de essas ideias serem tão grandiosas que elas só podem ser sustentadas por uma lógica capitalista que, por outro lado, não é sustentável pelas limitações do nosso próprio planeta e da nossa própria espécie. Um paradoxo em círculo vicioso. Por isso, o que o autor conclui é que nós não estamos sendo engolidos por máquinas, mas sim por “uma liga de bilionários da tecnologia que foram ensinados a acreditar que os seres humanos são o problema e a tecnologia é a solução.” É por isso que Rushkoff recomenda que estejamos atentos e cientes de suas agendas, de modo que possamos sobreviver e lutar pela nossa sobrevivência não contra máquinas superinteligentes e assassinas, mas sim à lógica avassaladora que o mercado e as grandes empresas podem tomar.

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