Por que o romance de George Orwell, publicado há mais de meio século, continua relevante e promete se estender ainda mais ao longo dos anos?

Há 70 anos, George Orwell lançava um romance que transcenderia o tempo e permaneceria para sempre contemporâneo, porém não necessariamente por um motivo bom. 1984 é uma distopia política, mas multifacetada conforme seus detalhes crescem em profundidade e angústia em um ritmo kafkiano, mas não menos autoral.

Escrito nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, o romance foi questionado pelo próprio autor quando, em um ensaio publicado em 1943, ele refletiu que, talvez, o livro fosse um ato “infantil ou mórbido de aterrorizar a si mesmo com visões de um futuro totalitário.” Passada a grande guerra e a subsequente Guerra Fria, o que pode parecer um passado distante para as gerações mais novas não é nada menos do que o ontem para os historiadores: esses grandes eventos do século XX ainda permanecem vivos e entremeados no nosso presente, muito mais do que talvez gostaríamos que estivessem. Daí a relevância de 1984 até hoje.

Em artigo para o Telegraph, Robin McGhee reflete justamente sobre a relevância desse livro que imagina uma Inglaterra esmagada por uma ditadura sem precedentes. “O partido governante, Ingsoc, reescreve a história de modo que ele nunca tenha cometido nenhum erro, cria um nova língua para fazer o pensamento livro inexpressível e procura poder eterno somente para si próprio.”

McGhee resgata uma análise feita pelo jornalista Dorian Lynskey, no qual este combina pesquisa literária com comentário crítico sobre as origens intelectuais e interpretações subsequentes do clássico da ficção científica. Segundo Lynskey, “o medo de Orwell estava no ‘próprio conceito de que a verdade objetiva está desaparecendo do mundo’, o que está no cerne de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.”

Como descreve o artigo no Telegraph, o ponto inicial da experiência de Orwell foi na Guerra Civil da Espanha, quando este se voluntariou a lutar contra o fascismo de Franco em 1936. O escritor, ainda jovem e idealista, chegou a se filiar ao Partido dos Trabalhadores da Unificação Marxista (POUM), uma pequena facção de comunistas dissidentes. Como o controle estava nas mãos dos stalinistas, Orwell chegou a ser preso e foi justamente aí que sua vivência em um sistema totalitário começava a ser moldada e vislumbrada.

“A violência da guerra não chocou Orwell, mas suas mentiras sim. A demonização do POUM e as repetições infundadas de mentiras stalinistas contadas por intelectuais ingleses endureceram sua mente sobre o que aconteceria quando não há nenhum consenso sobre a realidade.”

Ao retornar da Espanha em 1938, Orwell já era capaz de afirmar que “estávamos descendendo em uma era na qual dois e dois irá sempre dar cinco quando o Líder diz”, uma frase emblemática que se eternizou nas páginas de 1984 e que se verberou pela cultura pop, por exemplo através da música 2+2=5 da banda inglesa Radiohead.

Nessa mesma época, Orwell também trabalhou numa rádio e uma de suas ideias foi justamente editar os discursos de Churchill para fazê-los soar como se o Primeiro Ministro estivesse declarando paz. Com o conhecimento das premissas de funcionamento da mídia, neste caso o rádio, Orwell já era capaz de ver as alternativas de poder da comunicação para aquilo que só há poucos anos passamos a conhecer como pós-verdade. Para Lynskey, é justamente a pontuação de que um tirano é capaz de moldar a realidade apenas para sua conveniência que dá toda a força retórica de 1984. E isso fica evidente na própria descrição e narração do livro: “nem mesmo o leitor pode entender como navegar pelas mentiras do Ingsoc.”

“Quando lançado, no amanhecer da era atômica, o romance poderia ser facilmente lido como uma sátira dos eventos contemporâneos, com um divino-satânico Grande Irmão como uma imitação mal disfarçada de Joseph Stalin. Para sua desgraça, o trabalho de Orwell foi imediatamente adotada pelos anticomunistas como um exemplo do que poderia acontecer se o ‘perigo vermelho’ fosse longe demais. Suas editoras americanas até chegaram a falar com o diretor do FBI J. Edgar Hoover para uma citação. (A resposta de Hoover foi abrir um arquivo sobre Orwell.)
O livro foi banido em muitos países comunistas, enquanto no Reino Unido, o excêntrico ativista comunista Rajani Palme Dutt depreciava a obra como ‘a mais baixa essência do lugar comum de uma propaganda Tory anti-socialista por um ex-estoniano e policial colonial.”

No entanto, o pessimismo de Orwell sobre a perspectiva de uma guerra nuclear e de uma subsequente catástrofe social era um sentimento compartilhado por seus contemporâneos, como escreve McGhee. “Seu brilho particular foi combiná-los com seus medos das perspectivas da democracia, linguagem e cultura.” E quando o fatídico ano chegou, não faltaram esforços publicitários para vender a obra que, aliás, recebia preços como $19.84. Já em dezembro do ano anterior, também a Apple lançou um comercial dirigido por Ridley Scott, no qual uma interpretação do livro ganha uma nova personagem, uma heroína anônima que, com suas roupas, dava a deixa de que se tratava de uma personificação da chegada do computador Macintosh.

É curioso pensar como um livro que nasceu como uma crítica e uma denúncia de algo tão aterrorizante se tornou parte do imaginário cool da cultura pop conforme a publicação envelhecia, mas os conceitos sempre permaneceram iminentes. Como defende Lynskey, “o livro foi visto como uma sátira sobre a destruição da vida privada através da tecnologia. Esse aspecto da novela teve uma ressonância particularmente poderosa na era pós 11/9. A tecnologia se alinhou à distopia e, de fato, a dominou.”

Autores como Phillip K. Dick, Bruce Sterling e William Gibson, no entanto, tornaram essa denúncia ainda mais evidente muito antes do ataque de 11 de setembro: Blade Runner, como adaptação cinematográfica também dirigida por Ridley Scott, nada mais foi do que uma sublimação do romance “Androides sonham com ovelhas elétricas?” de Dick, e o qual ganhou toques ainda mais distópicos com a arquitetura brutalista e o aspecto noir que o diretor levou às telas. Nesse sentido, a crítica tecnológica feita por 1984 se tornou ainda mais evidente com a chegada do cyberpunk como uma releitura tecnológica dos anos 1980 a partir de uma perspectiva pessimista, porém mais “cool” do que o sombrio e austero livro de Orwell — vide “Neuromancer”, por exemplo, que se tornou uma publicação icônica e, inclusive, lançada em 1984.

“Como escreveu Thomas Pynchon em um prefácio de 2003, a internet é ‘um desenvolvimento que promete controle social em uma escala que aqueles velhos tiranos do século XX com seus bigodes toscos só poderiam sonhar.’
Em 2019, no entanto, é isso que nossos líderes escolheram fazer com tal tecnologia que parece tão importante. E para todas as subsequentes interpretações, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro continua firmemente fundada em um clima intelectual e tecnológico do começo do século XX.
Lynskey poderia ter investido mais tempo examinando o que este livro significa em 2019. Personagens sob suspeita são capazes de transitar com a perspectiva de não serem notados — algo que certamente o Ingsoc do século 21 seria capaz de manter eletronicamente identificado.”

Para McGhee, o Partido em 1984 acredita que é imortal porque ele controle as mentes humanas, bem como também há uma descrição que parece prever as possibilidades de edição genética quando se menciona o desejo de remover o impulso sexual das pessoas. Mas não precisamos ir tão longe assim: a biopolítica já consegue explicar bem a questão do controle do corpo e dos impulsos sexuais como uma forma de dominação.

Para Giorgio Agamben, quando tratamos de biopolítica, no entanto, estamos nos aproximando muito mais de uma “thanatopolitics”, isto é, uma política da morte do que do corpo. Já para Michel Foucault, disciplinar o corpo é o objetivo principal das sociedades modernas quando estas formam suas massas: o poder disciplinante é diferente da condição que o corpo nasce, mas este é treinado para extrair tempo e trabalho, gerar lucro e, portanto, estabelecer o sistema capitalista das economias industriais já desde o século XVI. Esses corpos, portanto, têm que ser “tanto úteis quanto dóceis”, de modo que o poder é desassociado do corpo para se tornar um veículo de “aptidão” e “capacidade” de gerar determinado produto ou finalidade.

Por fim, McGhee conclui sua reflexão trazendo um último ponto levantado por Lynskey, quando este declara que 1984 é, acima de tudo, um livro que trata de um totalitarismo tão abrangente que é capaz de afetar todos os aspectos da vida e da política. E por trazer reflexões tão intrínsecas ao humano e à política contemporânea, ainda é possível que as próximas gerações tenham muito a acrescentar com novas interpretações do romance da primeira metade do século XX com a chegada de novas tecnologias como reconhecimento facial, crédito social ou mesmo o uso mais abrangente do DNA decodificado, como sugere McGhee. Talvez não falemos mais sobre bilhetes de papel e transmissões de rádio ou televisores, mas a essência crítica de Orwell possivelmente se estenderá por ainda muitas décadas por bem ou por mal.

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