Ao não atualizar sua identidade e comunicação, a grife acabou por desengajar suas consumidoras que, por outro lado, estão mais conscientes da pauta feminista e com mais opções eficazes no mercado.

Com quarenta anos de história, a marca de lingerie Victoria’s Secret se tornou uma referência internacional tanto por seus produtos quanto pela identidade construída. Por um lado, modelos sonham em conquistar o corpo e os requerimentos que vêm junto ao posto de uma angel, assim podendo fazer parte dos desfiles grandiosos organizados pela grife. Por outro, as consumidoras almejadas pela marca (mulheres entre 18 e 49 anos) desejam absorver esse imaginário da Victoria’s Secret vestindo suas lingeries e usando seus demais produtos, como a linha de cosméticos.

No Brasil, chegamos a vivenciar um momento de febre em que viajar para o exterior significava trazer cremes da Victoria’s Secret para presentear ou revender. Mas, com o tempo, não só os produtos se tornaram mais acessíveis para os brasileiros como a própria grife não atualizou sua identidade de acordo com o espírito de nosso tempo. A isso se culminou o recente relatório que comprova a queda nos lucros da empresa-mãe da Victoria’s Secret, a L Brands, justamente no mesmo período em que a grife de lingeries realiza sua grande queima de estoque.

Se, outrora, esse momento do ano significava que as lojas físicas e virtuais teriam seu movimento intensificado, hoje, depois do movimento #MeToo, as mulheres já não estão mais se relacionando com uma marca que defende uma representação sexualizada e idealizada da figura feminina. Se, antes, os desfiles e imagens publicitárias da Victoria’s Secret eram admiradas por suas lingeries provocantes e extravagantes, pelas grandes asas de anjo vestidas pelas modelos e pelo sorriso sempre radiante e, ao mesmo tempo, provocativo, hoje não queremos e não nos identificamos mais com essa narrativa.

Mas não era só da imagem que vivia a Victoria’s Secret. Na verdade, uma das razões pelas quais a marca conquistou o mercado de lingeries é o fato de que toda mulher tem dificuldade em achar um sutiã que realmente sirva de forma correta ao próprio corpo. Conforme mais mulheres conseguiam encontrar modelos da Victoria’s Secret que se adequavam aos seus corpos, era natural que estas continuassem comprando da mesma marca por uma questão de maior comodidade. Mas com a chegada de marcas como a Lively, Evelyn & Bobbie e ThirdLove, que se focam na criação de lingeries mais confortáveis e inovadoras, que oferecem questionários online para facilitar a compra do melhor tamanho e que também possuem facilidades na hora de trocar e experimentar os produtos, só faria sentido se manter fiel a Victoria’s Secret se houvesse ainda uma identificação com o propósito ou a mensagem da marca. Mas não há.

A grife tentou subverter sua narrativa trazendo modelos de outras etnias para suas passarelas majoritariamente compostas por modelos europeias e americanas, mulheres loiras e de olhos claros. Em 2016, especificamente, quando a grife organizou seu desfile custando mais de US$12 milhões, ninguém estava esperando nada mais do que mais um desfile com mulheres altas e magras usando sutiãs push up e grandes asas de anjo. Mas foi nesse momento que, levando em conta uma agenda cada vez mais interessada no tema do feminismo, algumas opiniões passaram a tratar o fato de haver mulheres desfilando com lingeries fosse algo, na verdade, empoderador. Em uma análise publicada na Cosmopolitan, Jill Filipovic argumenta:

Escrever sobre exposições corporativas dos ideais de beleza feminina, independentemente se é um desfile de moda ou um concurso de beleza, é sempre complicado. Não há nada errado, imoral ou anti-feminista em mulheres aparecendo em público usando lingerie. Não há nada anti-feminista em apreciar a beleza feminina. Não há nada anti-feminista em gostar de moda, assistir a desfiles de moda e se envolver na fantasia e no consumismo disso tudo. Se fosse anti-feminista apreciar, comprar e vestir lingeries sexy, então eu teria sido expulsa do movimento há anos.
Mas colocar mulheres convencionalmente atraentes no palco — mesmo se essas mulheres sejam radicalmente mais diversas do que nos últimos anos — e usá-las como representações físicas do sexo de modo a vender sutiãs não é exatamente uma manifestação do sonho feminista. Mais perturbador é ver como o show tem sido cunhado “empoderador”, mesmo em contextos que fazem um pouco de sentido.

Filipovic comenta que, após o desfile, várias modelos, como Bella Hadid, usaram seus perfis em redes sociais para compartilhar depoimentos de como estavam felizes de terem desfilado ao lado de mulheres inspiradoras ou, nas palavras dela, “as mais inspiradoras e incríveis mulheres do mundo”. Para a crítica, apesar de certamente aquelas modelos terem qualidades, histórias e projetos para além da passarela, ser “profissionalmente bonita” não deveria ser o grande diferencial.

Isso pode te fazer rica ou invejável, mas de todas as coisas que devemos admirar como algo inspirador e incrível, o simples acidente de ter nascido com genes que fizeram com que você tivesse 1,80m de altura e maçãs do rosto perfeitamente esculpidas não deveria estar na lista. Não é que eu esteja menosprezando modelos — muitas de nós, inclusive eu, não nos qualificamos como as mais inspiradoras e incríveis mulheres do mundo, e se eu me parecesse como a Bella Hadid, eu provavelmente decidiria lucrar em cima disso também. Mas isso não me faria inspiradora ou incrível; me faria geneticamente abençoada e rica. Tornar modelos um grande referencial de inspiração feminina passa uma mensagem ruim não apenas para garotas e mulheres, mas também para garotos e homens, de que, ainda, a mais importante característica que mulheres podem oferecer é beleza física.

Uma das defesas levantadas por apoiadores da grife e que buscaram incorporar o feminismo às ações da Victoria’s Secret apontava que o desfile da marca seria, na verdade, uma celebração da sexualidade feminina. “Homens amam ver mulheres de lingerie, claro — mas mulheres amam ser aquela pessoa (não apenas para os homens), extremamente poderosa, confiante e sedutora, totalmente no comando de nossas identidades divinas”, como defendeu uma análise publicada no site Bustle, que acrescentou também o comentário de que a maioria das mulheres fantasiam em ser princesas ou criaturas mágicas, de modo que o desfile “comunica em alto e bom som que esse é um sonho que pode se tornar real para nós, mulheres”. Filipovic também cita uma outra análise feita pelo blog The Fairy Princess Diaries, que afirma que o desfile da VS, na verdade, “normaliza a sexualidade feminina” e o sentimento que “todas nós temos de ‘Quero ser sexy’”. Curiosamente, como aponta, Filipovic, ambas as fontes têm como inspiração a figura de uma criatura mágica, da princesa encantada como um ideal feminino.

Críticas culturais feministas há muito tempo apontam para o corpo feminino como um objeto que representa o próprio sexo — coisas sensuais para homens olharem e aproveitarem. Nessa famosa série da BBC e livro Ways of Seeing, o crítico de cinema John Berger comenta que, enquanto homens vêem — então como espectadores — mulheres como objetos a serem observados, as mulheres eventualmente também começam a se ver como objetos também. Isso significa que vivemos em um estado de hiperexposição, assistindo a nós mesmas sendo observadas em vez de simplesmente agir e curtir. Essa é exatamente a mesma dinâmica de muitas das propostas internalizadas nos desfiles da Victoria’s Secret: que a sexualidade feminina é algo a ser percebido como sexy (“Quero ser sexy”, como a autora do Fairy Princess Diaries coloca), em vez de realmente aproveitar o prazer físico do sexo. Não vi o desfile da Victoria Secret’s desse ano ainda, mas eu tenho certeza que nenhum elemento dele envolverá ou mesmo reconhecerá o prazer feminino — o decote estará lá, mas não o clitóris.

Mas como Filipovic aponta, nisso também não há nada de novo: “mulheres devem ser sexy, mas não realmente sexuais. Mulheres devem ser fisicamente atraentes para homens, mas se realmente vamos fazer sexo — pelo menos fora de certas situações socialmente prescritas — , nós somos vadias ou não temos respeito próprio.” Além disso, o próprio fato de a Victoria’s Secret chamar suas modelos quase nuas de angels (anjos) também só reforça a dicotomia da virgem e da vadia: “Não se preocupe, a marca parece estar nos dizendo. Sim, elas estão desfilando com lingerie sexy, mas é só para uma fruição estética — elas são boas garotas.”

Filipovic compara, então, como esse confuso e ambíguo imaginário da mulher como um objeto sexy acaba por também interferir na maneira como adolescentes desenvolvem sua sexualidade. Estudos realizados pela Associação Psicológica Americana revelam que a sexualização é endêmica entre garotas e jovens mulheres, de modo que já muito cedo essas meninas começam a sexualizar a si mesmas.

Isto é, as garotas começam a ver seu valor atrelado a parecer sexy, e esse tipo de autoavaliação estética inevitavelmente diminui sua autoestima e até mesmo diminui sua performance escolar. Em um estudo, jovens mulheres que fizeram uma prova de matemática enquanto vestiam trajes de banho obtiveram resultados significantemente piores do que aquelas que fizeram a prova usando moletom. Isso não quer dizer que usar traje de banho é errado e que mulheres devem cobrir seus corpos: é para dizer que mulheres e garotas são criadas com a ideia de que nosso valor está atrelado à nossa aparência física, e quando nossa aparência física é transformada em um ponto focal, nós tendemos a nos tornar mais autoconscientes, e nossa energia mental é direcionada nessa autovigilância em vez de outras tarefas. E tentar ser sexy não está realmente atrelado a um sexo melhor. Jovens mulheres que sexualizam a si mesmas têm a tendência de praticar sexo de maior risco e mostram menos interesse em sua própria fruição. Isso não deveria ser surpresa: quando você está primariamente preocupada com quão sexy você se parece, é mais difícil de relaxar e curtir o sexo em toda a sua humanidade carnal, bagunçada, imperfeita e ridícula.

Em outras palavras, mais do que amplificar esse ponto de vista tóxico de uma cultura sexualizada e sexista, a Victoria’s Secret lucra milhões de dólares em cima desse ideal falso e plastificado. Mas, como lembra Filipovic, isso não começou com a marca de lingerie, obviamente. A Victoria’s Secret é apenas um dos desdobramentos de uma cultura sexista que vem sendo combatida e criticada pelo menos desde o século 19, quando uma primeira onda de feministas reclamava os direitos sexuais, reprodutivos e econômicos das mulheres. Hoje, com essa agenda recuperada no âmbito midiático, ela é, muitas vezes, subvertida em mensagens que deturpam a ideia original ao, por exemplo, vender cremes contra celulite e sutiãs push up assim como se esses “empoderassem” a mulher de ter o corpo perfeito — mas perfeito segundo o que? Daí a falácia da body positivity, da qual já tratamos aqui.

Do mesmo modo que o pink money se tornou uma pauta importante nas últimas semanas, devido à apropriação desconcertada da causa LGBT pelo cantor Nego do Borel, essa expressão também passa pela forma como as mulheres são representadas nas imagens e no direcionamento dessas campanhas e ações de marketing alavancadas pelas marcas, de modo que o feminismo, por exemplo, aparece, muitas vezes, como uma inspiração para fazer dinheiro, não para realmente desconstruir e discutir aquilo que ainda é tabu, como é o caso da sexualidade feminina levantada por Filipovic. O fato de a Victoria Secret’s estar tendo uma queda em seu engajamento e vendas enquanto novas start-ups de lingerie estão comunicando com mulheres de forma mais eficiente e realista só demonstra a fraqueza dessa estratégia de comunicação insincera diante de uma população mais consciente e alerta a essas armadilhas retóricas.

Editado: As irmãs Alyse e Lexi Scaffidi criaram uma versão anti-Victoria’s Secret de um desfile de lingerie com mulheres com diferentes corpos e trajetórias de vida.

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