No ano passado, a proposta de reforma da Previdência levantada pelo presidente Michel Temer tinha como objetivo tornar as idades mínimas para aposentadoria como 62 anos para mulheres e 65 anos para homens. Isto é, conforme todo o mundo aumenta sua expectativa de vida (Japão liderando com 83,98 e Brasil com 75,5 anos), também se espera que alguma mudança seja feita em termos de legislação trabalhista e de como lidar com essa cada vez maior massa de pessoas fora do mercado de trabalho. Mas, na verdade, é a própria lógica do envelhecimento que muda conforme alcançamos maiores expectativas de vida, tratamentos e mudanças comportamentais.
Se, por um lado, transhumanistas estão tentando acabar com o envelhecimento ou até mesmo erradicar a morte, por outro, há aqueles que se identificam com o movimento chamado FIRE. Em inglês, a sigla se refere à conquista de uma independência financeira e de uma aposentadoria antecipada (financial independence, retire early), e os adeptos dessa filosofia de vida são pessoas que têm como objetivo se aposentar entre os 30 ou 40 anos. Em uma reportagem publicada no site da BBC, Chris Stokel-Walker apresenta algumas pessoas que se identificam com esse novo olhar sobre as coisas, começando pelo economista britânico Barney Whiter.
Whiter conta que, quando ele começou o colegial, em 1981, seus pais decidiram comprar uma casa que, no entanto, seria paga em parcelas que se dividiram por muitos anos a frente — um comportamento bastante comum entre os ingleses. Com uma recessão que atingiu o país, os juros aumentaram em 17%, o que fez com que os pais de Whiter passassem a economizar tanto que não havia mais férias ou mesmo assinatura de jornal. Seu pai não comprava mais cerveja, mas fazia a sua própria. E foi assim que ele mudou sua postura diante do dinheiro: “Eu passei a entender que era algo assustador dever muito dinheiro ao banco.”
Depois de seguir uma carreira de 20 anos no mercado financeiro, Whiter percebeu que seu salário melhorou depois de fazer especialização, mas seu estilo de vida não seguiu a mesma lógica. Diante disso, Whiter resolveu começar a guardar pelo menos metade de seu salário todo mês para poder ter uma aposentadoria tranquila. Ele também decidiu não usar mais o metrô e ir de bicicleta ao trabalho, além de ter parado de beber. Hoje, com 48 anos, Whiter se orgulha de ter se aposentado aos 43, mas tudo isso só foi acontecer porque, pouco antes, ele começou a seguir o blog Mr Money Mustache, administrado por um canadense que se tornou famoso por ter se aposentado também aos 40.
O movimento FIRE, portanto, tem como característica entre seus membros a decisão de viver uma vida o mais leve possível, guardando pelo menos metade de seu salário durante os 20 ou 30 anos, assim podendo se aposentar por volta dos 40. Mas apesar de, à primeira vista, o objetivo desse grupo parecer ser o de viver um sabático sem fim, a verdade é que essas pessoas desejam obter uma independência financeira para poder viver de forma simples, mas saudável, harmoniosa e fora do ambiente competitivo e adoecedor do meio corporativo.
Apesar de essa ideia não ser tão nova, foi com a internet e a proliferação de blogs a respeito que o FIRE ganhou perspectiva e abrangência, tornando-se popular em todo o mundo. Hoje, como levantado pela reportagem da BBC, há podcasts como o Firedrill que possuem cerca de 7.000 downloads por episódio e está no top 100 dos podcasts mais investidos no ranking da Apple.
O curioso, porém, é que essa comunidade de jovens está indo na contramão dos hábitos fomentados pelos millennials: cerca de dois terços dos millennials não economizaram nada para sua aposentadoria, conforme apontado por um relatório do Instituto Nacional de Segurança e Aposentadoria nos Estados Unidos. Isso equivale a um total de 58% de americanos com menos de 35 anos que sequer possuem uma conta-pensão. O mesmo vale para o Reino Unido, como apontado por uma especialista em aposentadorias entrevistada pela BBC: 1.500 millennials britânicos foram entrevistados em 2017 e estes estavam guardando apenas 4.6% de seu salário para a aposentadoria.
Enquanto consultores financeiros geralmente apontam uma média de 12 a 15% de economia do salário para se obter uma aposentadoria tranquila, essa porcentagem é muitas vezes vista como muito pequena pelos simpatizantes do movimento FIRE — mesmo porque, o objetivo dessas pessoas é aposentar o mais rápido possível. Para isso, pessoas como Craig Curelop, um analista financeiro de 25 anos, chegam a adotar filosofias como “tenha tudo, não use nada”. Isto é, apesar de ser dono de um carro, ele não o dirige, mas o aluga por um site e usa uma bicicleta em vez disso.
Essa também foi a estratégia que Curelop seguiu ao alugar seu quarto no AirBnB e passar a usar a sala de estar para dormir. “Eu decidi fazer um pseudo-quarto na minha sala de estar ao colocar uma parede divisória e uma cortina. Eu vivi desse jeito por um ano”, ele conta. E suas economias foram tantas que ele conseguiu até mesmo comprar um duplex no ano passado, além de outra casa que comprou este ano — esta, aliás, possui todos os quartos alugados, menos o que Curelop usa. “Estou economizando algo entre $3,000 e $4,000 por mês. Dessa forma, devo ter juntado algo entre $60.000 e $70.000 nos 18 meses desde quando eu comecei a fazer aquele esquema na minha casa.”
Mas o FIRE também possui seus críticos, como é o caso do consultor de planejamento financeiro Damien Fahy: “Parece, para mim, uma versão extrema da dieta Atkins. Eles têm um monte de pontos positivos e algumas boas bases no planejamento financeiro, mas eu realmente acho essa uma versão extrema e que não necessariamente serve pra todo mundo.” Fora isso, outro aspecto controverso no movimento FIRE é: quanto dinheiro realmente é necessário para se aposentar com 30 ou 40 anos? Alguns críticos argumentam que eles subestimam a verdadeira quantia necessária, já que, se aposentado aos 30, você ainda teria que levar em conta os 50 anos que pode continuar vivendo a seguir. Mesmo assim, não deixa de ser difícil quantificar o valor necessário para se ter mais segurança ao adotar tal estratégia.
Por outro lado, muitos dos adeptos do FIRE não vêem nessa aposentadoria um verdadeiro basta ao trabalho. No caso de Gwen Merz, de 28 anos, ela reuniu cerca de $200,000 em propriedades imobiliárias, ações e um pouco de dinheiro para deixar seu trabalho em TI aos 27 e então começar o podcast Firedrill: “Não sou aposentada. Eu ainda tenho que trabalhar, mas tenho a liberdade de escolher fazer o que eu realmente gosto e que talvez não pague tanto.” Sua esperança é que seus investimentos consigam prover uma boa qualidade de vida para quando ela realmente decidir parar de trabalhar. Afinal, o FIRE não é só sobre dinheiro, mas também é uma comunidade, uma rede de parceria e apoio. “Há mais pessoas andando por aí e que não se importam se você está dirigindo um carro com 13 anos de idade”, ela comenta.
Além do carro antigo, Merz também evita comprar outros produtos, como por exemplo um videogame, já que considera supérfluo. Ela também não come em restaurantes com tanta frequência quanto antes e também não viaja muito. E é baseado nesse tipo de comportamento que surge mais uma crítica: será que vale a pena sofrer a curto prazo para viver um ganho a um longo, porém incerto, prazo?
Para Merz, esse tipo de argumento foge do foco do FIRE: “Se você está se privando tanto, você não será feliz, e não será capaz de manter esse hábito”. Uma dica que Merz dá é cortar tudo aquilo que pode não ser necessário até o ponto em que se torna desconfortável, e só então tentar ajustar para encontrar o equilíbrio novamente. “Você deve ser capaz de viver a sua vida da melhor forma, mas isso não significa que deve gastar rios de dinheiro. Você não precisa ir a um bar caro no centro da cidade. Você pode chamar seu amigo para beber por muito menos”, ela explica.
Whiter também aplica o FIRE para toda sua família, evitando costumes consumistas como presentear crianças com os mais novos modelos de smartphone, por exemplo. Para o britânico, não se trata de uma vida de privação, mas sim uma vida simples. “Não faz sentido viver miseravelmente por 20 anos para então viver miseravelmente por mais 20 anos depois de aposentar”, comenta.
Nesse sentido, o que Whiter e Merz, bem como outros adeptos do FIRE argumentam, é que o importante é poder se livrar da lógica atual do mercado de trabalho atual para poder ter mais equilíbrio e liberdade para trabalhar naquilo que se quer e que faz sentido. “Humanos têm uma necessidade intrínseca de trabalhar. Nós precisamos sentir um membro valioso da sociedade, e isso não vai parar de ser assim porque você tem um número arbitrário na sua conta bancária”, argumenta Whiter.
A ideia desse movimento, portanto, é alcançar a independência financeira através da flexibilidade e da recusa de certos hábitos de consumo que nos são postos como “normais” ou mesmo “desejáveis”, de modo a focar naquilo que é realmente importante. “Eu me sentia aprisionado ao sistema. Sentai como se eu estivesse em uma prisão, trabalhando para sustentar um estilo de vida que eu não queria de verdade”, revela Whiter. “Boa parte disso (FIRE) é emocional e psicológico. Você tem que viver isso para entender quão poderoso é.”