No mês passado, os assinantes da newsletter UP Future Sight receberam o link do artigo que explicava por que o vazamento de dados genéticos é mais perigoso do que um vazamento de dados do cartão de crédito. O texto, escrito por Angela Chen, já começa partindo do fato de que, diferentemente de um cartão de crédito, que pode ser substituído, nosso DNA não pode ser modificado. E o motivo pelo qual a autora abordava esse problema é que, naquela semana, o site MyHeritage, que oferece testes de DNA para que as pessoas entendam melhor quais são suas origens a partir do código genético, havia sido hackeado. Mas apesar de os dados que foram vazados conterem apenas os e-mails dos usuários e suas senhas, não seus dados genéticos, isso fez com que essa possibilidade aparecesse para a reflexão.
Em entrevista para o The Verge, Giovanni Vigna, que é professor de ciências da computação da UC Santa Barbara e co-fundador da empresa de segurança da informação Lastline, comentou que hackers podem ameaçar o acesso ou expor dados sensíveis de usuários se as vítimas não pagarem o preço pedido — foi por isso que um hospital de Indiana chegou a pagar $55 mil para hackers. Mas no caso específico dos dados genéticos, Vigna diz que eles podem “ser vendidos ou monetizados por empresas de seguro. Você pode imaginar a consequência: um dia, você pode aplicar para um empréstimo de longo termo e ser rejeitado porque nas profundezas daquele sistema corporativo, há dados de que eu provavelmente terei Alzheimer e morrer antes de poder pagar pelo empréstimo.”
Enquanto a MyHeritage não oferece esse tipo de análise com diagnóstico de doenças, as empresas 23andMe e Helix disponibilizam. Como descreve Chen, esse tipo de informação pode ser valoroso para pesquisadores que precisam de dados genéticos para pesquisa científica, por exemplo para a cura de doenças como o próprio Alzheimer, mas também pode servir para empresas calcularem o preço do seguro de vida e de saúde de seus clientes, bem como a polícia também pode utilizar essa mesma informação para rastrear criminosos, como já o fez em um recente caso nos Estados Unidos.
Esse assunto foi levantado como uma das pautas do debate Ficção científica e inovação tecnológica, do qual participei nesse fim de semana, na FLIP 2018. Ao lado dos escritores Cristina Lasaitis, Lady Sybylla e Alexey Dodsworth, discutimos o fato de que o governo canadense está usando dados genéticos fornecidos por essas empresas como estas para identificar imigrantes.
Jayden Robertson, porta-voz da Agência de Serviços de Fronteira do Canadá disse, na sexta-feira passada, que eles estão usando testes de DNA para determinar a identidade de “detentos de longo prazo” depois que outras técnicas já fossem testadas. “O teste de DNA ajuda a CBSA a determinar a identidade ao oferecer indicadores de nacionalidade, portanto permitindo que foquemos nossa linha de investigação em países em particular.”
No entanto, como apontado na própria notícia sobre o caso publicada na CBC, esse processo também acaba por trazer consigo a questão da privacidade de dados assegurada por esses sites e empresas de teste de DNA, além de ter um fator político bastante forte quando levamos em conta a maneira como imigrantes são tratados pelo governo — algo surpreendente, quando pensamos que essa iniciativa partiu do Canadá. Com mais de 30 mil refugiados tendo cruzado a fronteira dos Estados Unidos e Canadá desde janeiro de 2017, essas pessoas estavam justamente fugindo das políticas migratórias de Donald Trump.
Em uma reportagem publicada na VICE na quinta passada, um advogado especializado em imigração comentou que um de seus clientes está sendo investigado pela CBSA a partir de seu DNA mapeado na base de dados da FamilyTreeDNA.com. Nesse caso, as autoridades canadenses estão procurando subterfúgios para deportar o indivíduo, que era da Libéria, porém, de acordo com os resultados de seu mapeamento genético e testes linguísticos, a agência tem especulado que ele seria da Nigéria. Tais resultados são bastante controversos, uma vez que eliminam o fato da migração e troca genética entre povos, algo interessantemente explorado neste vídeo, em que alguns participantes que, mesmo se considerando negros ou sabendo que sua família origina de determinado país, acabaram descobrindo que seu código genético é majoritariamente composto por povos considerados brancos e de outros países que não aqueles dos quais realmente seus ancestrais imigraram.
Apesar de a empresa FamilyTreeDNA não assumir trabalhar diretamente com o governo canadense, o representante da CBSA, Jayden Robertson, diz que ainda assim eles pedem pelo consentimento dos usuários antes de manipular seus dados. “A CBSA não discute as mecânicas de suas técnicas de investigação publicamente, e se o fizesse, acabaria as tornando ineficazes”, ele argumenta.
O que esse tema também levanta como reflexão é a tecnologia de edição genética CRISPR. Nesse caso, ao mesmo tempo em que a técnica está sendo levantada como uma possibilidade de editar nosso DNA para eliminar genes “defeituosos”, isto é, que carregam doenças como câncer ou Alzheimer, também se pensa em como essa mesma técnica poderia permitir que criássemos os chamados designer babies. Como nosso tema na FLIP era a relação entre ficção científica e inovação, e como o gênero não só impulsiona a curiosidade científica como também funciona como uma importante ferramenta metafórica para entendermos os desdobramentos de uma determinada tecnologia na sociedade, levantei a comparação do CRISPR com o que é abordado no filme Gattaca (1997).
Mais do que se pensar na capacidade de escolher a cor dos olhos e os cabelos dos filhos, são as possibilidades de melhoramento de certas características físicas que poderão limitar e excluir aqueles indivíduos que nasceram de forma natural — no filme, os chamados “filhos de Deus”, por não terem sido nascido após serem manipulados pela ciência. É por isso que, naquele universo, encontramos o exemplo de um grande pianista que teve seu DNA manipulado para nascer com seis dedos em cada mão, assim tendo maiores habilidades do que um pianista com dez dedos.
Por outro lado, em um dos episódios da série Explained disponível no Netflix, é justamente essa questão da edição genética que é abordada de um ponto de vista bastante novo e importante. Uma das entrevistadas, portadora do gene do nanismo, comenta que sua família possui essa característica há várias gerações e ela, grávida, também quer passar isso adiante. Não é como se isso fosse um defeito ou uma deficiência para ela, já que ela consegue viver de maneira normal apesar de suas particularidades. É a partir desse discurso que ela questiona: se houvesse a possibilidade de retirar o gene do nanismo de seu filho, ela o faria? E ela diz que não, o que daria no mesmo caso a expressão genética apontasse para outra direção, por exemplo para Síndrome de Down. Isto é, o que a entrevistada levanta é o problema social como uma força mais impositora do que a questão genética.
Controversas e ao mesmo tempo estimulantes, descobertas científicas como o CRISPR abrem diferentes possibilidades incríveis para um futuro mais saudável e positivo para todas as pessoas, mas com elas também vêm as consequências de uma má exploração que deve ser endereçada de um ponto de vista ético. Dodsworth, como doutorando em filosofia, tem se dedicado à investigação dos dilemas éticos em torno do transhumanismo. Durante nossa conversa na FLIP, o pesquisador comentou que, muitas vezes, a filosofia só é chamada para a conversa quando algo já deu errado, de modo que as leis e o lado ético das tecnologias só acabam sendo endereçados quando algum problema já ocorreu.
Porém, enquanto no Ocidente tentamos desvendar o mistério dos limites e das possibilidades de aplicação de tecnologias de edição genética, na China, onde os valores e a cultura diferem, macacos já foram clonados usando a mesma técnica da ovelha Dolly, o que, no entanto, aponta para um maior salto de proximidade para a clonagem humana — algo que, no entanto, não está na pauta dos cientistas chineses.Por outro lado, eles já estão usando CRISPR para tratar embriões contendo genes com doenças, algo que também já trabalhado no Reino Unido.
Em um amálgama de diferenças culturais e de competitividade tecnológica, afinal, como também lembrado por Dodsworth durante a Flip, a ciência sempre foi um elemento distintivo de poder para as nações, é provável que acabemos entrando em uma nova Guerra Fria que, no entanto, será travada entre Estados Unidos e China. Desta vez, porém, também é provável que a corrida não seja mais espacial, mas sim genética.