Experimentos na Finlândia e Canadá já demonstraram redução nas taxas de estresse e depressão dos beneficiários, enquanto que, no Quênia, também foi observado redução de violência sexual e física contra mulheres. Mais do que futuro do trabalho, a renda básica universal promete mudar nosso próprio comportamento como sociedade.

Ao longo da última semana, o festival de inovação e tecnologia SXSW contou com apresentações sobre diferentes tópicos, dentre eles a questão da renda básica universal. Uma das pessoas a reacenderem esse assunto em ambientes tech-savvy foi a congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez ao argumentar que, na realidade, nós deveríamos ficar animados com os processos de automação e não o contrário, como é de praxe.

Apesar de a automação já ter feito com que meio milhão de pessoas perdessem seus empregos nos Estados Unidos e ainda reserve uma perspectiva de acabar com cerca de 800 milhões de postos de trabalho até 2030, o que Ocasio-Cortez defende é que, na realidade, o problema não está em perder o emprego para uma máquina, mas sim o fato de que estar desempregado hoje, em nosso contexto sócio-econômico atual, significa tornar-se miserável.

Isto é, o problema não está na automação em si, mas nos sistemas por detrás desse processo (tanto do ponto de vista industrial quanto governamental) que não sejam capazes de lidar com essa transição. Em suas palavras, “nós não deveríamos ficar nervosos que o cobrador de pedágio não cobre mais pedágio. Nós deveríamos ficar felizes com isso. Mas o motivo pelo qual não estamos é porque vivemos em uma sociedade em que não ter um trabalho significa ser deixado para morrer.”

Uma das propostas levantadas pela congressista remete à ideia de Bill Gates sobre a taxação de robôs, o que, em outras palavras, significa taxar em 90% as empresas que tiverem seus processos e serviços automatizados ou ainda concentrar o recebimento da renda básica universal àqueles que perderam seus empregos por conta da automação, o que foi uma ideia defendida por 68% dos respondentes de uma pesquisa realizada pela Gallup em 2018. “Seja pelo nível de impostos ou pela distribuição das riquezas que são geradas pela automação, se começarmos a pensar em soluções para nossos sistemas e ter ideias como essas, então deveríamos ficar contentes pela automação por conta do que ela potencialmente pode significar”, complementou Ocasio-Cortez.

Para a congressista, em uma sociedade na qual os sistemas governamentais são capazes de assegurar que riquezas são geradas e que todos têm acesso a elas de forma sustentável, as pessoas então teriam mais tempo para investir em educação, arte, pesquisa científica e invenção — teríamos, em outras palavras, mais tempo para “curtir o mundo onde vivemos”, afinal, “nem toda criatividade precisa estar ligada a um salário.”

É nesse sentido que a congressista tange a questão do futuro do trabalho como algo conectado ao propósito. “Nós deveríamos trabalhar o mínimo que já trabalhamos se fôssemos realmente pagos baseados em quanta riqueza nós estamos produzindo, mas não somos”, ela comenta. Nesse sentido, o problema não está na quantidade de horas trabalhadas, mas sim em como essa dedicação do trabalhador é desproporcional à forma como ele é recompensado. Conforme apontado por uma pesquisa realizada pela International Labor Organization, entre 2006 e 2015, trabalhadores geraram lucros maiores do que seus salários em um desajuste de 2,3% ao ano para os lucros e 2,1% para os salários. Em outras palavras, estamos mais produtivos, mas não melhor pagos, o que põe em xeque o modelo de trabalho (e, principalmente, de carga horária) que temos hoje.

Mas apesar de Elon Musk ser uma das pessoas chaves quando o assunto é inovação tecnológica e ideias extraordinárias, este levantou uma nova polêmica quando, no ano passado, tuitou que “ninguém muda o mundo trabalhando 40 horas por semana.” Para ele, uma jornada de trabalho “sustentável” para quem deseja realmente mudar o mundo seria de 80 a 90 horas por semana, o que significa trabalhar de 11 a 18 horas cada dia, caso se queira manter o fim de semana livre.

Tal ideia não é nada mais e nada menos do que a proposta da cultura do hustle, já debatida aqui anteriormente e, apesar do seu valor simbólico no ambiente corporativo, médicos continuam lutando para desmascarar essa prática e deixar claro que a quantidade de horas de trabalho não está proporcionalmente ligada à produtividade real de uma pessoa, mesmo porque “a produtividade precisa de combustível e todos nós precisamos nos recarregar para mantê-la”, como afirma a psicóloga clínica Janet Kennedy, fundadora da organização NYC Sleep Doctor. Segundo ela, “privação do sono causa um prejuízo cognitivo que pode levar a erros e acidentes custosos e perigosos no trabalho.” Fora isso, esse tipo de comportamento também nos deixa mais propensos a adoecer, entrar em depressão e ter problemas de ansiedade — tudo que contraria a possibilidade de se tornar um profissional produtivo.

A contrapartida disso é que os primeiros experimentos de renda básica universal já geraram alguns resultados como, na Finlândia, na qual houve uma redução de 37% na taxa de depressão entre os beneficiados, enquanto que em Ontário, no Canadá, uma análise não-oficial sobre um piloto já encerrado indica que 88% dos beneficiários se sentiam menos estressados e 47% se sentiram menos marginalizados ao também terem mais acesso a alimentos e moradia melhores.

Em adição, uma nova pesquisa realizada pela Princeton University também aponta para a possibilidade de que programas de renda básica universal ajudem na maneira como nos relacionamos com as pessoas, seja em uniões maritais ou como sociedade. Isso ficou claro com relação ao experimento realizado no Quênia com apoio da ONG Give Directly, que fez transferências para moradores da parte ocidental do país entre os anos de 2011 e 2013. Mas mais do que influenciar no poder aquisitivo dos quenianos, o programa de renda básica acabou intervindo em uma estatística alarmante no país: 42% das mulheres quenianas com idade entre 20 e 44 afirmam já ter experienciado algum tipo de violência física ou sexual de seus parceiros.

A descoberta feita pela equipe de pesquisadores da Princeton, que inclui o professor de psicologia e assuntos públicos Johannes Haushofer, foi justamente que esse tipo de ajuda financeira surtiu efeito na incidência de casos de violência doméstica. “A violência está fortemente relacionada ao poder aquisitivo — famílias mais pobres tendem a ter maiores taxas de violência doméstica”, argumenta o acadêmico. Nesse sentido, seu time buscou entender se diminuir a pobreza nesses núcleos familiares poderia surtir efeito nesse problema, e a resposta foi tão positiva quanto as mudanças foram significativas.

Conforme elucidado na reportagem do site Fast Company, “nas casas nas quais as mulheres recebiam o dinheiro por transferência bancária, ambas as taxas de violência sexual e física diminuíram significantemente. Os pesquisadores focaram na violência contra a mulher. Comparado ao grupo de controle, o número de mulheres que reportou ser chutada, arrastada ou agredida por seus maridos diminuiu em 51% entre as mulheres beneficiadas. Nas casas dessas mulheres beneficiárias, os incidentes de atos sexuais forçados diminuiu em até 66%. Em casas de homens beneficiários, as taxas de violência física caíram em 59%, mas as reduções em violência sexual não foram estatisticamente significativas.”

Para Haushofer, esses resultados sugerem que a violência física é provavelmente usada pelos maridos para extrair recursos de suas esposas. “Quando há uma folga financeira nos lares — o dinheiro da transferência pode ser usado para preencher algumas das preferências do marido — , eles não têm mais esse tipo de comportamento [violento], complementa o professor. No entanto, no caso da violência sexual, o quadro muda um pouco conforme Haushofer analisa os resultados não tão significativos nesse sentido quando são consideradas as casas em que os homens foram beneficiados pelo programa. Em outras palavras, “a redução nas taxas de violência sexual nos lares em que as mulheres receberam o dinheiro pode refletir o fato de que os pagamentos extras [também] deu às mulheres mais poder seja para resistir à violência sexual ou abandonar o relacionamento.”

Curiosamente, os pesquisadores descobriram que mesmo as mulheres que não foram beneficiadas no programa também perceberam e vivenciaram uma melhora em suas comunidades, o que leva à conclusão de que o experimento não está apenas focado na complementação da renda de algumas pessoas, mas em como isso acaba se irradiando para além dos beneficiários. Diante disso, o time de Haushofer só encontrou mais um argumento para justificar a importância de realmente implementar o programa e fazê-lo definitivamente universal. Afinal, se mesmo beneficiando apenas uma parcela da população os demais já experienciaram efeitos positivos, então é provável que a distribuição geral potencialize ainda mais as possibilidades por trás do projeto. Assim fica em xeque a maneira como lidamos com o trabalho e seu modelo de jornada, uma vez que passamos então a desassociar o poder de gerar dinheiro à nossa competência como profissionais para entender que obter poder aquisitivo é, primeiro, um direito básico de sobrevivência de um cidadão e depois um indicativo de sucesso (seja ele financeiro ou não).

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